ABRUPTO

20.2.12


O FIM DAS LIVRARIAS


O fim anunciado da Livraria Portugal, a decadência penosa da Sá da Costa, o fim da Buchholz, assim como de várias livrarias na província, ou de pequenas livrarias temáticas em Lisboa, mostra a dimensão de uma crise que afecta directamente o livro, mas, mais ainda, aquilo que se pode chamar o "mundo dos livros". A mesma decadência se nota em livrarias que ainda sobrevivem, cuja aproximação do fim um olho treinado percebe, como sejam as mudanças que pouco a pouco se percebem com a falta de renovação dos stocks, a invasão de títulos de "papel pintado" de uma só editora, a crise nas distribuidoras e modo como a consignação de livros é hoje feita, a caótica distribuição dos títulos, tudo isto mostra uma mudança que não é só provocada pela crise, ou pela concorrência das grandes superfícies como a Fnac, ou com as compras pela Internet.

A livraria tradicional caminha para uma dimensão de "culto", e isso permite algumas pequenas livrarias, livrarias de "autor", se se quiser, livrarias especializadas, livrarias que combinam os livros novos com os antigos, que são dirigidas por livreiros no sentido nobre do termo, pessoas que conhecem muito bem os livros, os seus leitores-clientes, o modo como o mercado, mesmo neste nicho evolui, e que usam o seu know-how para sobreviver. Mas, enquanto antes este sector, que sempre existiu, era entendido como especializado e funcionando em complemento com as grandes livrarias generalistas clássicas, agora estamos perante um dualismo entre as livrarias de supermercado, ou as Fnac - que faça-se justiça não são livrarias de supermercado -, e os espaços de "culto" dos livros. A grande livraria clássica está a desaparecer.

Veja-se o caso da Livraria Portugal, localizada num espaço privilegiado, e cuja cobiça certamente lhe acelerou o fim, para além da perigosa proximidade com a Fnac do Chiado. A livraria existia há 70 anos, fundada em 1941 em plena Segunda Guerra Mundial. A data não é irrelevante, porque em 1941 era difícil ver-se o presente sem muito receio. Portugal podia a qualquer altura ser sugado para o conflito, e, se virmos o passado com os olhos de hoje, os livros deveriam parecer bem pouco necessários e importantes. Os três amigos que a fundaram, bibliófilos que mereciam este nome, tinham um programa simples: "Levar a toda a parte e a cada um o livro necessário." A livraria cumpria-o pelos livros que oferecia, pela qualidade do seu serviço (os velhos empregados da livraria conheciam mesmo os livros), como pelo seu Boletim Bibliográfico, que não só divulgava as novidades como tinha artigos originais.

Conheço a livraria há cerca de 40 anos. Como em todas as livrarias que crescem connosco, obrigam a um trajecto próprio. Na Livraria Portugal, onde as mudanças sempre foram muito lentas, esse trajecto representava a apreensão do "corpo" e da identidade da livraria. As livrarias conhecem-se como as pessoas, e a única mudança substancial no meu trajecto interior foi ter deixado de ir ao andar de cima e ficar apenas pelo andar térreo. Mas o andar de cima era, já há muitos anos, único, porque a livraria tinha o exclusivo das publicações de uma série de instituições internacionais, a UNESCO, a OCDE, a ONU, e outras, que faziam do andar de cima uma livraria técnica muito especial. Mas o "meu andar" foi e é, até ao fim do mês de Fevereiro, o de baixo.

Entrava-se pela rua, depois de ver as montras, em particular a da direita e as vitrinas junto da porta, porque, como a livraria tinha muitos livros únicos, os que estavam expostos ou se viam à porta ou não existiam lá dentro. A primeira mesa à direita passava-a apenas com um olhar rápido: eram publicações de direito e algumas especializadas de arte, sem serem álbuns de mesa de chá. À direita - o meu trajecto fazia-se sempre pelo "corredor" da direita -, começava a animar-se, e a tornar o meu bolso mais leve, a partir da segunda mesa, onde havia uma série de publicações académicas que não se encontravam em nenhuma outra livraria. Depois havia uma terceira mesa com publicações de pequenos editores ou de autor, também sem paralelo noutras livrarias "generalistas". Começavam aí as compras. Depois fazia o mesmo corredor para trás, para a zona direita das mesas centrais. Aí, também, não sei por que mistério, apesar de estarem livros das grandes editoras, havia sempre alguma coisa de história ou política, que nunca tinha visto noutro sítio. É isso que torna uma livraria única: descobrem-se livros que nunca se viram, e essa é também a grande vantagem das livrarias. Pegar e folhear um livro, ler o índice, ou, para um incorrigível bibliógrafo, dar uma vista de olhos às referências e às citações. Com o actual panorama da distribuição, em que o "papel pintado" ocupa o espaço todo, encontrar livros diferentes "faz" uma livraria diferente.

Chegado ao fundo, onde arrancavam as escadas para o andar de cima, havia uma pequena montra de revistas, que com o tempo foi tendo cada vez menos coisas, mas na qual a Seara Nova, a Política Operária e a revista de emigrados Latitudes permaneciam valentemente até ao fim. Era na Livraria Portugal que as comprava, com excepção da Política Operária que, depois de mudar de formato, passei a comprar na Letra Livre.

Estou agora a dirigir-me à porta, do outro lado do U. Aí havia uma outra banca única, com revistas em formato livro, monografias, estudos históricos, com um número significativo de livros estrangeiros, brasileiros, franceses e ingleses. Era também aí o único sítio em que passava para trás das mesas acedendo às estantes, porque os fundos especializados da livraria eram também únicos. História, geografia, genealogia, monografias locais, portuguesas e "ultramarinas", eram já uma sobrevivência do tempo em que a livraria servia de novidades os departamentos das universidades americanas, que usavam o Boletim Bibliográfico para as suas encomendas. Olhava para o lado esquerdo das mesas do meio, mas aí já era raro encontrar alguma coisa e passava por cima da última mesa que tinha livros médicos. Estava junto da caixa, e era aqui que normalmente conversava com quem trabalhava na livraria, gente, como já disse atrás, muita sabedora que conhecia o mundo dos livros como ninguém. Numa entrevista dada ao jornal i, quando se soube do encerramento, um deles disse: "Nunca tive outra vida senão esta."

Não foi por minha falta que a livraria fechou, sempre lá comprei muitos livros e mesmo já com a Fnac em vida, fiz sempre questão de passar pela Livraria Portugal antes de subir a rua e de lá ir comprar mais uns livros. Mas o fim da livraria estava já anunciado há muito tempo. Ainda o discuti com os seus empregados, chamando a atenção para que em Lisboa não havia (e não há) uma única livraria inglesa decente, e que isso oferecia um "nicho de mercado" que ninguém ocupava. Mas sabia, como sabiam os meus interlocutores, que para arrancar um projecto deste tipo era preciso investir muito dinheiro e ninguém o tinha.

Vai pois acabar a Livraria Portugal e juntar-se às minhas memórias da velha Leitura no Porto, da Buchholz sob a férula alemã "não se pode mexerrr" e de mais alguns fantasmas. Eram livrarias de pessoas, feitas de pessoas e para as pessoas, em que os livros não eram instrumentais, mas eram um "mundo" em que todos participavam. Esse mundo está a desaparecer para o comum dos portugueses e a deslocar-se para os consumidores "de culto" ou para os consumidores de "papel pintado" e capas todas iguais, ou para aqueles que dizem que lêem no iPad e não lêem coisa nenhuma.

Parte desta mudança é inevitável, e não é má em si porque para muita gente significa que vai continuar a ler: não faço parte dos nostálgicos do cheiro dos livros, nem das más livrarias, mesmo com cem anos. Mas das boas livrarias tenho pena que despareçam e prescindo que me dêem lições de mercado e da "destruição criativa" schumpeteriana. Não é isso que está em causa, mas aquilo que, num balanço geral, feito por qualquer Deus que veja tudo, significa mais pobreza, menos qualidade, mais deserto afectivo como os "likes" do Facebook, mais tijolos da moda, e menos livros que sejam livros na mão de quem os vende e na mão de quem os compra. 

(Versão do Público de 18 de Fevereiro de 2012.) 

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Também recebi a notícia do fecho da Portugal com resignação, mas sem grande surpresa; a lista de livrarias de Lisboa desaparecidas nas últimas duas décadas, e donde tenho muitas memórias da minha juventude, não pára de aumentar: a Escolar Editora dos Restauradores, a Arco-Íris, a Citação, na Rua dos Fanqueiros (não tenho a certeza se esta já desapareceu mas, da última vez que lá fui, era apenas um resquício do que tinha sido).

Mas o serviço bibliográfico da Portugal era único, e é uma perda real. Não posso dizer que tenha grandes saudades do atendimento do andar de baixo que, tal como na maior parte das livrarias da Baixa, era fortemente classista (agora, nalgumas até mais antigas, é simplesmente incompetente), mas a Portugal não era das piores e esta pequena crítica não se estende ao atendimento do serviço bibliográfico, nem ao "meu" andar, o de cima.

O meu percurso na Portugal também tinha os seus rituais: entrava e dirigia-me, a direito, à escada espelhada, com corrimão de madeira, do fundo; daí subia e parava na estante logo a seguir, onde habitavam, por esta ordem, a Geografia, a Metemática e as Ciências Biológicas, inspeccionava a mesa à esquerda, onde também se encontravam livros científicos que não existiam em mais lado nenhum, e seguia para aqueles curiosos nichos, que ficavam junto das janelas; no que dava para Santa Justa, estava a Física e a Quimica, noutro, que dava para a Rua do Carmo, estava a Engenharia Electrotécnica (o meu estudo "oficial"). No piso térreo, um destes nichos (se não me engano, o terceiro a contar da porta de entrada), tinha livros muito curiosos de Filosofia e Linguística.

Quando soube do fecho fui ver, nos meus livros, os que tinham o característico autocolante prateado; muitos, já não os consulto há anos, desde que mudei a minha língua principal de leitura do Português para o Inglês e, em boa verdade, nas nossas livrarias era muito mais comum encontrar péssimas traduções brasileiras (as da MIR eram uma fonte interminável de anedotas), do que as obras originais, cujo preço então era proibitivo, e só se podiam obter de encomenda (mesmo assim, ainda aprendi muito com os agora velhinhos dois volumes do "Cálculo" do Tom Apostol, com a "Física" do Alonso & Finn e com os vários volumes do Landau & Lifshitz). Também aprendi muito com um outro nicho do andar de baixo, que já mencionei: foi lá que encontrei traduções portuguesas, hoje provavelmente já esquecidas, dos Diálogos de Berkeley, dos Problemas de Russell (a tradução de António Sérgio), a Razão, Verdade e História de Putnam e uma (surpreendentemente boa) tradução da obra principal do primeiro filósofo que estudei sistematicamente: The Logic of Scientific Discovery, de Popper (que eu saiba, ainda não há hoje uma tradução portuguesa deste livro, mas não acho isto surpreendente: os filósofos da escola Anglo-Saxónica têm muito pouca expressão cá). Também não consigo resistir a escrever sobre as razões que levaram um Engenheiro Electrotécnico, com inclinação para a Matemática, para estes filósofos. A principal delas é a de ser um primitivo (por muitos anos) Pré-Bolonha; na altura, uma das cadeiras do primeiro ano do Técnico era justamente História e Filosofia da Ciência (espero que o nome, tirado apenas da memória, esteja correcto), e eu encontrei tantos pontos de desacordo com o responsável, o já falecido Prof. Resina Rodrigues, que resolvi começar a ver algumas coisas por conta própria; esta vontade, que ainda mantenho, devo-a a ele. Bom, mas hoje isso é um "saber inútil", tal como tantos outros que estudei e que apenas atrapalham (ou será que devia dizer "complexam"?) a minha função de engenheiro; coisas que os "qualificados" (palavra que, tal como dizia o outro, me dá uma vontade enorme de sacar da pistola) de hoje já não sofrem...

Quando comecei a poder comprar mais alguma coisa, o meu percurso mudou: logo a seguir às estantes, virava à direita, pela porta envidraçada, subia as escadas e estava no serviço bibliográfico. São daí as minhas últimas recordações da Portugal: a procura nas dezenas de gavetas de arquivo e nos catálogos, o preenchimento da encomenda e depois os dois meses de espera da praxe, até que chegava o postal a dizer que já tinham lá o livro. Quando este serviço começou a degradar-se, confesso que deixei de ir à Portugal (e à maior parte das livrarias de Lisboa) pois, para quem tem o seu ponto de referência do lado anglo-saxónico, o aparecimento da Amazon foi uma libertação. Concordo consigo quando diz que "não é a mesma coisa" mas, no meu caso, a liberdade de escolha mais que compensa o ritual da ida à livraria e, por isso, assumo a minha parte da culpa do seu desaparecimento, e esta não é tão leve quanto possa parecer: desde há anos que assisto ao desaparecimento de muitos marcos da minha juventude, não vendo aparecer outros que sirvam de renovação, e esta forma particular da Seta do Tempo deixa-me triste.

João Carlos M. A. Soares
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Muito interessante o seu post sobre a livraria Portugal.
Eu nunca fui frequentador assíduo da Portugal, mas gostava de lhe deixar uma reflexão:
O ritual do “passeio” pela livraria, o ser surpreendido e trazer algo que, se não nos aparecesse à frente dos olhos, nunca procuraríamos, é uma alegria para um leitor.
Mas, tenho para mim, que, paradoxalmente, essa é a razão para o declínio das livrarias com livreiros, com escolha editorial, com livros que fogem da medíocre oferta presente - no fundo, com qualidade.
É que isso implica escala.
Eu frequentava muito uma pequena livraria em Lisboa – era óptima, os empregados eram os donos; dava gosto ir lá e não andar à procura de literatura pelo meio de lixo.
Qualquer pergunta sobre autor/livro era prontamente respondida, como se conhecessem todos os livros que vendiam (e, provavelmente, assim era). Aconselhavam, criticavam, sugeriam e, muitas vezes até, impunham – que bom!
Mas aconteceu-me uma coisa curiosa, depois de ir lá 20-30 vezes, comprando alegremente muitos livros, começou-se a tornar monótono – já conhecia as prateleiras de cor e salteado. Sempre que queria um livro específico, muitas vezes não havia, acabando por encomendar. E, confesso, isso tirava-me algum prazer – o de ir lá, e à noite não estar já a devorar o que queria; ou, o ser surpreendido, e trazer um substituto ou um complementar (ou todos!). Comecei a ir cada vez menos – e fechou! Assaltou-me um sentimento de perda, e de culpa (pois, quando criamos uma relação sentimental, acabamos por considerar que tivemos alguma responsabilidade; que podíamos ter feito mais).
Concluindo, o seu (meu) ritual é a morte das livrarias de qualidade – as grandes, como a Portugal, não conseguem concorrer com as Fnacs; as pequenas, sendo poucas, e não tendo grande movimento/rotação, rapidamente tornarão esse ritual monótono e previsível.
Como é que isto se resolve? Só com massa crítica – que, em Portugal, claramente não temos (nem me atrevendo a calcular quantas gerações precisaremos para a ter!). 
Pedro Pereira



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