Há dias, no programa Prós e Contras,
um conselheiro de "empreendedorismo" teorizava, de forma prosélita e
desenvolta, sobre as más escolhas de "projecto de vida" que
justificariam muito do desemprego actual. Era evidente pela conversa,
que achava que existia uma espécie de culpa individual em se estar
desempregado. Pelo meio, perguntou, com evidente escárnio, a um
desempregado se este tinha tirado um curso de História, uma
imprevidência para quem quer ter um emprego. Não tenho dúvida de que
quem formulava esta pergunta fazia parte de um dos lados do novo binómio
da luta de classes descrito por Passos Coelho, o dos "descomplexados
competitivos". O curso de História, se tivesse feito parte do currículo
do desempregado, colocá-lo-ia de imediato na categoria de "preguiçoso
autocentrado", antiquado e inútil, "piegas" e queixoso, a quem é preciso
dar um abanão de pobreza a ver se se torna "competitivo". Estamos, como
já referi, perante uma nova forma de luta de classes: a que opõe
"descomplexados competitivos" a "preguiçosos autocentrados". Pelos
vistos, uma característica destes últimos é que se interessam por
História.
É verdade que saber História vale muito pouco no
mercado de trabalho, mas também é verdade que saber Matemática pura,
Física Teórica, Astronomia, Biologia Molecular, já para não falar de
Filosofia, Sociologia, Geografia, Grego Clássico e Latim, Literatura
Portuguesa, também não valem muito mais. E, by the way, os
milhares de licenciados em Marketing, Economia, Jornalismo, ou como se
diz agora "Ciências de Comunicação", Artes Performativas, Arquitectura,
Composição, os pianistas, violoncelistas, violinistas, também não vão
muito longe. Seguindo o critério do nosso mago do "empreendedorismo",
não é muito difícil, e no meu caso gratuito, aconselhar cursos seguros e
certos. Eu costumo aconselhar maltês, uma língua de que há enorme
escassez de tradutores e intérpretes na UE, e o turco, russo, chinês e
árabe também podem fazer parte do currículo dos candidatos a
"descomplexados competitivos". Mandarim ou cantonês de certeza que têm
futuro, assim como "beber a água do Bengo", na exacta composição
químico-financeira corrente para esses lados.
Saber de História
não é garantia de nada, nem o conhecimento da História garante que se
saiba governar um país. Mas ajuda, ajuda pelo menos a ter-se uma visão
menos cega da nossa missão no governo das coisas privadas e públicas, e a
conhecer alguma coisa sobre os limites do voluntarismo político. E
ajuda bastante a não se ser ignorante, nem a se actuar como um ignorante
quando se pensa que tudo começa em nós, essa ilusão adâmica muito
corrente nestes dias.
A História ajuda nas coisas grandes e nas
pequenas, torna o mundo mais interessante e alimenta a curiosidade e o
engenho. Para gostar de comer um croissant não é preciso olhar
para ele com os olhos da História e perceber que se está a cometer um
acto muito pouco politicamente correcto de turcofobia, ou, pior, de
islamofobia. Mas quem sabe o que é e de onde vem o croissant,
costuma saber um pouco mais sobre a História da Europa e isso faz bem à
sanidade do debate público. Muita asneira que para aí circula sobre os
feriados e o seu significado, sobre a Maçonaria, sobre o comunismo,
sobre o fascismo, sobre a democracia, poderia ser evitada lendo um pouco
mais sobre História.
A História, como todas as formas de
cultura viva, é uma forma de saber e olhar. Engana e ilude muito, mas
também modera a tendência para a vã glória. Se é que a História nos
ensina alguma coisa, é que poucas coisas são realmente importantes e que
99,99% dos casos o que fazemos pouco muda, ou não muda nada. Para os
governantes, é obrigatório, para se enxergarem melhor, uma actividade
que normalmente não lhes "assiste". Países como o Reino Unido, ou os
EUA, têm a História no centro da política, o que nem sempre dá bons
resultados, como se vê em França, onde todos os Presidentes do passado
achavam que eram uma encarnação de Vercingétorix, Joana d"Arc, Luís XIV,
Napoleão ou De Gaulle e os actuais já ficam contentes em serem como o
Astérix.
O discurso de Odivelas do primeiro-ministro ganhava
alguma coisa com a História, embora, como ele se encontra na categoria
dos "descomplexados competitivos", não ligue muito a uma disciplina dos
perdedores. Mas assim saberia que, antes de nomear os "preguiçosos
autocentrados" como seus adversários, deveria pensar duas vezes sobre o
papel que o epíteto de "preguiçosos" tem quando é usado genericamente
para designar grupos ou comportamentos sociais. Para os colonos, os
"pretos" eram a quinta-essência dos "preguiçosos" e por isso deviam ser
obrigados a trabalhar à força de castigos corporais. Puxem pela língua a
muitos patrões e aos seus capatazes (hoje chamam-se "responsáveis pelo
pessoal"), às "patroas" sobre as suas "criadas", e o epíteto de
"preguiçoso" aparece quase de imediato. Em países em que coexistem zonas
industrializadas com regiões rurais, os habitantes dessas regiões, o
Alentejo, a Galiza, a Andaluzia, o Sul de Itália, são descritos em
anedotas como "preguiçosos". Nos campos trabalha-se muito, dependendo do
ciclo agrícola, e há períodos de inactividade, onde, como toda a gente
sabe das anedotas, os alentejanos estão debaixo de um "chaparro" a ver o
mundo passar em slow motion.
Existe, aliás, outra
classificação que costuma vir junto, a de associar essa ruralidade à
falta de inteligência e dificuldade em socializar de forma adequada, ou
seja, não só eram estúpidos, limitados, como não sabiam comer à mesa. É
para isso que servem os epítetos de "saloios" ou de "labregos", a
interessante migração da palavra galega para camponês, que veio junto
nos anos trinta e quarenta do século XX com os galegos, que a miséria da
sua terra trouxe para trabalhar em mercearias e restaurantes, ou outros
ofícios menores, em Lisboa e no Porto. O problema da História é este, o
de tornar poucas palavras inocentes.
Na luta de classes entre
os "descomplexados competitivos" e os "preguiçosos autocentrados", a
ordem dos pares é interessante, quer na parte social, quer na do
psicologismo vulgar. Os "preguiçosos" são primeiro preguiçosos e s??
depois são "autocentrados", e os "competitivos" são primeiro
"descomplexados" e é por isso que são "competitivos". Os pares têm, por
isso, uma ordem invertida: nos "preguiçosos", avulta a condição social,
nos "descomplexados", a psicologia domina. Embora provavelmente nada
disto tenha sido muito pensado e saiu assim, como poderia ter saído de
outra maneira semelhante, este dualismo revela aquilo que os sociólogos
chamam as background assumptions do seu autor. Os que estão
presos na sua condição social, deixam soçobrar a sua psicologia no
egoísmo; os dinâmicos psicologistas ultrapassam a sua condição social
pelo êxito no mercado.
O país divide-se assim entre
funcionários públicos, vivendo do erário público, acima das suas posses,
e fazendo tudo para ter feriados e não trabalhar (os "preguiçosos"),
cultivando um egoísmo social assente em pretensos "direitos adquiridos"
("autocentrados"); e jovens yuppies, dinâmicos e empreendedores,
com uma "cultura empresarial", capazes de correrem riscos
("competitivos"), sem cuidarem de terem "direitos" para subirem "por
mérito" na escala social ("descomplexados"). Nem uns nem outros existem
na vida real, nem sequer como caricaturas, que é o que isto é, mas isso
pouco importa.
A História está cheia destes dualismos, velhos
como o tempo, mas típicos da linguagem abastardada do poder dos nossos
dias. É um esquema assente numa mistura de demonização e de wishful thinking,
que circula assente num moralismo social, também típico dos dias que
passam. A História revela o poder destrutivo deste tipo de discursos,
que se tornam, de um momento para o outro, socialmente insuportáveis.
Esse
momento ainda não se deu, e os papagaios do "pensamento único" repetem
este discurso sem pararem para pensar. Ou sequer para ler alguma coisa
de História, mesmo com o risco de se tornarem "preguiçosos
autocentrados".