ABRUPTO

10.2.12


COISAS DA SÁBADO: MENOS PIEGAS 


Não conheço discurso de Passos Coelho que melhor retrate a retórica oficial deste governo do que aquele que fez esta semana numa escola privada de Odivelas em que deu aulas. O grupo de que faz parte essa escola tem um conjunto de edições cujo “eduquês” deveria assustar o Ministro da Educação, e inclui uma intitulada “contra o terror do neoliberalismo” assim anunciada 

Com os seus mundos utópicos de poder, comércio e rentabilidade, o neoliberalismo introduziu uma nova Era Dourada, na qual a lógica do mercado governa agora cada aspecto dos media, da cultura e da vida social – desde a escolarização aos cuidados de saúde. À medida que o contrato social se torna uma memória longínqua, o novo “estado empresarial” distancia-se a si próprio dos trabalhadores e grupos minoritários, que se tornam cada vez mais descartáveis num novo tempo de incerteza e de medo cultivado. 

Não sei se ofereceram o livro ao Primeiro-ministro. 

Dito isto, Passos Coelho explicou a epifânia adâmica que o motiva e que não sei se assusta mais pela ingenuidade, ou se pela inconsciência. Previno desde já quem ache que estas coisas são do domínio da ideologia, que ao célebre neoliberalismo que a escola acha um “terror”, não lhe dou esse estatuto. É mais uma colecção de lugares comuns que estão na moda, a vulgata do “pensamento único” dos nossos dias. Emerge da crença de que o que está em curso é uma espécie de revolução puritana do Bem contra o Mal (o apelo à “transformação de velhas estruturas e velhos comportamentos muito preguiçosos ou, às vezes, demasiado autocentrados”, por outros “descomplexados, mais abertos, mais competitivos”) e dá como exemplo nem mais nem menos do que a história do feriado do Carnaval (cito o Público): 

A “diferença” entre uma atitude ambiciosa e exigente e outra “agarrada ao passado” (…) considerando que há quem prefira continuar a “lamentar-se com as medidas, com os feriados, com o Carnaval” em vez de lançar “mãos à obra”. (…) como foi “caricato” aquilo que aconteceu no ano passado, quando a troika estava em Portugal para negociar a assistência financeira: “Quem emprestava dinheiro trabalhava enquanto o país aproveitava os feriados e as pontes”. 

A senhora Merkel não diria melhor: a luta de classes é entre “preguiçosos autocentrados” e “descomplexados competitivos”, no palco dessa celebração pagã que é o Carnaval. Percebem melhor porque acho que a ideologia não é chamada para estas coisas? Depois vêm os conselhos aos portugueses para não os deixar cair na tentação do pecado (na língua que ele usa chama a isto “enfatizar a relevância”): 

(…) criticando ainda discursos que consideram que há “demasiada austeridade”, que as medidas adoptadas para corrigir os défices do país são “muito difíceis” e, portanto, é melhor “andar para trás” e voltar “a gastar o dinheiro” que o país não tem, até porque “o FMI e a UE hão-de emprestar mais dinheiro, que remédio”, já que Portugal faz parte da zona euro. 

Admito que se possa dizer que é isto que o PCP e o BE defendem, ou até que o seu companheiro de estrada no PS, sugere. Mas este regresso ao passado está bem longe do sentimento da maioria dos portugueses, que, para bem do Governo, sabe que a austeridade é necessária. Porém, esta interiorização da inevitabilidade da austeridade, não chega para um novo puritano. Tem que haver expiação dos pecados, ou seja tem que se mexer na cabeça e no corpo das pessoas para extirpar o mal e, para isso, aconselha os portugueses a serem “menos piegas”. Num país civilizado, bastava esta frase, no actual contexto de crise violenta para as pessoas, para derrubar um governo. Aqui, a sorte do governo é que as pessoas ainda são muito complacentes, ou, se se quiser, “piegas”. 

Esta espécie de revolucionarismo de varinha mágica é bem evidente no que disse sobre a “falácia” 

de que as grandes reformas levam anos a produzir efeitos”: “Não é verdade. (…) As pessoas ajustam-se rapidamente à mudança. Mas tem de haver uma mudança (…). Os agentes ajustam-se muito rapidamente e antecipam os resultados quando há credibilidade”

A palavrinha “agentes” denuncia o economês, mas a frase toda denuncia a ideia tecnocrática típica dos “descomplexados, mais abertos, mais competitivos”, de que as sociedades se “gerem” como as empresas, um dos maiores lugares comuns que presidem a este “pensamento único” dos dias de hoje. Não, senhor Primeiro-ministro, os “agentes” não se “ajustam muito rapidamente” ao empobrecimento de uns e às prebendas de outros, à linguagem que reduz os contratos sociais que são “direitos adquiridos” a apenas contratos empresariais das PPP, à ideia de que que quem não é “competitivo” merece o desemprego e a miséria e ainda por cima ser insultado de “piegas”.

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© José Pacheco Pereira
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