Quem
tiver a paciência para ler estas palavras está a passar o seu dia do
Natal e sabe de mais sobre a nossa colectiva desgraça. O Natal é, no
conjunto do ano, um momento único que nenhuma outra festa ou feriado
reproduz nem de perto nem de longe. Costuma dizer-se que é uma festa da
família, mas é muito mais do que isso. É um momento em que, numa
sociedade egoísta e fechada sobre si própria, há um simulacro de alguma
sociabilidade mais colectiva. Eu disse simulacro, porque é cada vez mais
simulacro, convenção, hábito sem sentido, mas, mesmo simulacro, ainda
tem um vago traço de um momento em que há amigos, vizinhos, parentes que
não se vêem há algum tempo, unidos pela "estação". A tradição já não é o
que era, mas ainda é tradição.
Os votos de bom Natal, e, por junto, de ano novo, circulam cada vez mais às centenas entre pessoas e aos milhões em email
e SMS, e cada vez menos em papel. Também aqui a preguiça induzida pelas
novas tecnologias ajuda à erosão das relações sociais, mantendo-as e
até ampliando-as na quantidade, mas diminuindo-as em valor. Os votos de
boas festas por email ou SMS são feitos a listas e não a pessoas,
listas aliás nem sempre bem mantidas, com endereços repetidos e
antigos, mandados como se fosse um robot a mandar, sem qualquer
pessoalidade. É como os "amigos" do Facebook, listas e enumerações sem
significado afectivo, apenas com valor social, mostrando como o "eu"
electrónico que os manda é tão popular que colecciona centenas e mesmo
milhares de relações.
As famílias também não são a coisa
idílica que o "espírito de Natal" enaltece, e têm inscrita não só
solidariedade e protecção, como um "ninho", mas também muita violência
às claras e muito particularmente às escuras. Violência entre homens e
mulheres, pais e filhos, parentes amados e odiados, questões e
questiúnculas, transmitidas com segredo e raiva os restantes dias do
ano. Por isso, o Natal não só fornece o conforto e a intimidade de um
"lar" comum e um destino partilhado, coisas que não são de pequena
monta, mas exacerba muitos comportamentos de depressão e animosidade,
que não tem muita imprensa e apenas alguma literatura, mas que todos
sabem que existe.
Digo isto para referir que o Natal potencia
tudo, muita coisa boa e muita coisa má. Por isso, o pano de fundo do
Natal é contraditório como todas as coisas são na vida, e quando a vida
se encarrega lá fora de piorar, entra cá dentro puxando pelo pior e pelo
melhor de nós. Digo este truísmo porque temos tendência para apenas ver
o melhor, nas sucessivas reportagens de solidariedade natalícia, em que
a sociedade parece responder às dores dos que mais necessidade e menos
protecção têm. E é verdade que isso acontece, mas daí a dizer que os
portugueses são um povo especialmente solidário não corresponde à
verdade. Não somos, nem fomos, nem provavelmente vamos ser.
Este
Natal será triste. Não sei que melhor qualificativo haverá para este
momento da nossa vida colectiva. Não digo indignado, embora muita gente
esteja indignada. Não digo desesperado, embora muita gente esteja
desesperada. Não digo apático, embora muita gente esteja apática. Não
digo deprimido, embora muita gente esteja deprimida. Não digo zangado,
embora muita gente esteja zangada. Digo triste, porque mais ou menos,
vaga ou profunda tristeza, todos sabem que a vida vai piorar, e que não
existe esperança no futuro próximo, que é o que temos possibilidade de
vir a viver. A tristeza não é fruto de momentâneas dificuldades,
mas da suspeita de que essa dificuldade não tem fim à vista. Quando
saímos disto? A melhor resposta é mesmo "não se sabe". Não será
certamente nem 2012, nem 2013, nem 2014, nem 2015, datas anunciadas em
diversos momentos e em diversas circunstâncias por governantes,
economistas, e políticos em geral. O que significa que as pessoas, que
têm uma intuição aguçada para estas coisas, olhando para a frente vêem
que não há frente. Mesmo que dure apenas cinco anos, o que duvido, para
muita gente significa que o fim da sua vida, a reforma, a doença, o
declínio físico, vão ser muito piores, a solidão e a dependência ainda
maiores. Para quem é mais novo, um mundo com emprego e com a
possibilidade de "construir" o seu espaço próprio não existe. Podem
emigrar, bem sei, mas também sei quão traumática é essa decisão, que não
é mais fácil do que viver cá na precariedade. No "meio do caminho da
nossa vida", cada vez mais pessoas sentem-se a perder a escassa
qualidade de vida que tinham conseguido, por mérito, ou por dívida, e
que agora sabem que não vão conseguir pagar. Tudo é mau, para milhões de
portugueses, operários, trabalhadores, empregados, funcionários,
pequenos empresários, mesmo uma pequena e média burguesia frágil e
recente vai empobrecer.
Entre o Natal e o ano novo muitas
decisões vão ser tomadas por pessoas e famílias. Não são decisões
daquelas a que associamos o ano novo: ano novo, vida nova. É mesmo vida
nova, mas não é uma vida escolhida, é uma vida nova forçada. Tirar o
filho do infantário. Dizer à filha que já não vai poder ir para a
universidade ou o politécnico, porque não há dinheiro para a manter em
Santarém, Covilhã ou Aveiro. Aguentar mais um ano com o mesmo carro a
cair, por muito que custe perder a oportunidade de comprar outro antes
dos impostos aumentarem. Despedir um velho empregado, fechar a mercearia
que já era do pai, e entregar tudo ao fisco que já de há muito tem uma
execução em curso. Entregar a casa ao banco e vê-la numa lista de
leilões do fisco no Correio da Manhã por menos dinheiro do que o
valor do empréstimo. Voltar para casa dos pais. Penhorar a jóia que era
da avó ou vender a volta da filha numa loja que compra ouro. Aceitar o
mesmo trabalho com metade do salário. Dizer que sim aos expedientes do
patrão que despede e depois reemprega de seis em seis meses para não
pagar obrigações de segurança social. Engolir a consciência sindical, e
portar-se bem no emprego, não vá o chefe notar. Deixar de ter ajuda no
trabalho doméstico. Fazer qualquer coisa, colares, artesanato, compotas,
para ir vender na feira que agora a autarquia organiza na rua uma vez
por semana. Desistir de fazer qualquer coisa, colares, artesanato,
compotas, porque não se vende nada e fica caro comprar os materiais e as
compotas estragam-se. Ver que remédio se pode cortar para diminuir a
conta da farmácia. Deixar de pagar a renda, deixar de pagar a
electricidade, o gás, a creche. Deixar de pagar aos fornecedores. Deixar
de pagar o condomínio, que deixou de ter dinheiro para pagar a
manutenção dos elevadores. Subir três, quatro, cinco, seis andares da
escada com as compras porque o elevador está avariado. Deixar ficar o
vidro partido na janela. Matar-se. Emigrar. Desistir. Resistir.
São
estas as decisões deste Natal, de um Natal triste. Há uns imbecis nos
blogues que acham que falar dos problemas concretos das pessoas que não
são fils a papa, publicitários, gente de glamour, neoliteratos, assessores de várias eminências, yuppies
sem mercados, consultores, advogados de sucesso, é neo-realismo. A
única coisa que se lhes pode perdoar é não saberem o que a palavra
significa, mas tudo o resto não e perdoável nem mesmo com muito
"espírito de Natal".
É particularmente irritante, e socialmente
perigoso, que acrescentem à miséria uma lição moral do género "têm o que
merecem porque viviam acima das suas posses", todos contentes com a
purga moral do país pelo empobrecimento. O empobrecimento pode ser
inevitável, mas deixem de lhe atribuir qualquer valor catártico e vender
como nova propaganda que, no dia em que estivermos mesmo muito pobres,
vai começar a nova aurora económica, a ascensão de uma economia de
sucesso, livre do Estado, competitiva e dirigida por uma "nova geração"
liberal e desempoeirada.
Sim, sim, tretas. Sem mão-de-obra
qualificada, com mercado interno deprimido ao limite, sem classe média,
sem capacidade de poupar e com o país cheio de tretas. Sim, sim, tretas.