ABRUPTO

19.12.11


SARILHOS GRANDES 



Uma semana depois da Cimeira da “última oportunidade” já se percebeu que não foi a última, nem teve nada a ver com qualquer “oportunidade”, nem sequer foi Cimeira, se se entender que, numa cimeira se voa alto no poder e na qualidade de decidir. Foi mais um desastre, na linha de uma década de sucessivos desastres, em que os principais dirigentes da União Europeia se entregaram a um exercício de bater repetidamente com a cabeça na parede. Na cimeira seguinte, lá caminharão para o mesmo lugar, onde já está a marca da sua cabeça na parede, e começarão de novo a bater. O problema é que não é só a cabeça deles que bate na parede, mas a de milhões de europeus, o destino de povos e nações e , last but not the least, o destino do projecto europeu. 

Fazem-no com todas as responsabilidades do mundo, e essa responsabilização terá que ser pedida sem ambiguidades. O caminho de erros sobre erros que estão a trilhar há já demasiados anos, apoiados pela intelligentsia extrema-europeísta, os interesses e a burocracia a ela associados, tem sido denunciado com muita clareza. Infelizmente este é um dos casos em que a realidade todos os dias dá aos críticos das últimas décadas do processo europeu, isolados e silenciados pela ortodoxia do “pensamento único” europeu, toda a razão.

Nem sequer me refiro aos eurocépticos mais radicais, mas a gente que é moderada, sensata, e acredita no projecto europeu, o que não acredita é nesta correria desenfreada para “resolver” problemas reais com sempre as mesmas propostas de engenharia política virtual, que, fora destes círculos, ninguém compreende, ninguém apoia, e acima de tudo ninguém deseja. Há quem deseje e bem uma política europeia concertada, assente nos interesses comuns da Europa, prudente e de “pequenos passos”, sempre em consonância com a vontade de povos e nações, mas não há ninguém, fora destes extremistas cegos, que tenha desejado uma Constituição europeia, e os sucessivos tratados posteriores, que abriram caminho à situação actual e são tão inúteis como uma chávena sem fundo. 


E para falar nna última cimeira, não há ninguém de bom senso que entenda que a melhor maneira de começar a tratar do problema das dividas soberanas e da violação dos tectos do défice, seja acrescentar aos tratados e acordos existentes, que já sancionam todas estes comportamentos, um novo tratado assente em cláusulas sancionatórias automáticas, em mudanças constitucionais problemáticas, em reforços dos poderes de Bruxelas sobre os parlamentos e os estados soberanos. Nada disto resolve coisa nenhuma, como se vê.

A Alemanha seguiu este caminho com a França, a Alemanha muito a sério, a França como buffonerie. Merkel sabe o que quer, mas isso não chega. Sarkozy anda a ver se encontra um teatro qualquer que lhe permita ganhar as eleições. Mas, nenhum deles teria podido percorrer o caminho para este desastre se todos os outros países tivessem sido aquilo que se espera de cada um na UE: países de parte inteira, com políticas externas e europeias, defendendo os seus interesses (não há nenhum mal nisso), mas que não aceitassem fazer o papel de paisagem para o tandem Merkel- Sarkozy. Num certo sentido, mais do que o tandem, foram eles que levaram a Europa a este impasse, porque estando a ser ultrapassados na praça pública pelas sucessivas cimeiras franco-alemãs não disseram “ó meus amigos, vamos lá a ter sensatez e começar a conversar entre todos um pouco mais”. E não o fizeram exactamente porque a sua relação com o processo europeu é cada vez mais frágil e porque sabem que os sucessivos actos de decisão, como o Tratado de Lisboa, foram tomados com dolo para não haver referendos, tornarando cada vez mais difícil fazerem alguma coisa pela Europa, dentro dos seus países e fora deles. Castraram-se na sua voz própria e agora cantam como tenorinos num coro dominado pela voz máscula de Merkel e pela pícara personagem de Sarkozy. Quante buffonerie! 

Há pecados mortais em política que expulsam os que os cometem do paraíso. Uma das coisas que impede hoje muitos dirigentes europeus de serem mais “europeus” em política interna foi o facto de terem aceite, salvo honrosas excepções, cobrir as manobras francesas de disfarçar a Constituição no tratado de Lisboa, e de garantir que este “passaria” sem consultas que o legitimassem num momento em que já se percebia com clareza o crescente divórcio entre a UE e as opiniões públicas dos estados europeus. No centro da actual crise não estão as dívidas soberanas, nem as violações dos limites do défice, mas sim a cobardia institucionalizada dos líderes europeus que andam há demasiado tempo a fugir de dar ao projecto europeu a legitimidade que actualmente lhes falta. Por isso, actuam todos com má-fé e permitiram ao tandem Merkel-Sarkozy de, diante dos olhos de todos, usurparem a condução colectiva da UE. 

Haverá consequências da cimeira de há uma semana? O problema é que haverá demasiadas consequências e são todas más. A um problema sério, que é a incapacidade de defrontarem os problemas de credibilidade financeira na UE, acrescentaram uma enorme trapalhada institucional, mais um pesadelo jurídico, e o início de um processo nunca visto de empurrar um país fundamental para haver Europa, o Reino Unido, para as trevas exteriores. Pior de tudo, nada disto, que era tão evidente como haver sol na terra e chuva em Bruxelas, foi antecipado, nem sequer desejado nem no mais maquiavélico dos planos. O magistral “ruído” da realidade entrou pelas portas da cimeira e continua a troar como as mil trombetas do Apocalipse. O desastre, se não for atalhado o mais depressa possível, e não se vê como, é mesmo de bíblicas proporções, porque é o som do fim da UE. E a Europa precisava mesmo de uma UE. 

Voltemos à Cimeira. Se bem que Cameron não tivesse conduzido muito bem sua participação na cimeira, com um discurso inicial de reivindicações da City que dava a entender que se elas fossem atendidas também assinaria um Tratado que retirava poderes para o Parlamento inglês, veio mais tarde a corrigir o discurso. Porém, o que conta, mais do que o discurso, foi a atitude e essa era inevitável face a uma condução autoritária do tandem Merkel-Sarkozy de um processo que ia à revelia de um país, onde o Parlamento já executou um rei para ser respeitado, e onde a identidade nacional não se compara à Bélgica. Sarkozy fez tudo para humilhar os ingleses e os ingleses bateram-lhe com a porta. Numa deriva perigosa, temos hoje a França a sugerir às agências de notação o abaixamento do rating do Reino Unido, o que diz bem de como estão as relações entre os dois países. 

Cameron não é isento de culpas na deriva do processo europeu. Também ele se opôs a um referendo ao Tratado de Lisboa, para que igualmente havia compromissos dos conservadores. Mas o Reino Unido tem sido um precioso factor de equilíbrio, neste caso como travão, para o caminho federal e dos “Estados Unidos da Europa” que os extremistas europeístas por eles já tinham feito com Constituição, bandeira e hino incluído. Sem o Reino Unido, ou com um Reino unido hostil (Cameron já avisou que as instalações e recursos da UE não podem ser utilizados pelos signatários de uma “pacto orçamental” à margem dos tratados), a UE ficará nas mãos da Alemanha e da França, e muitos outros países que agora ficaram à deriva começaram a juntar-se ao Reino Unido. 

A Cimeira abriu por isso a porta a gigantescos sarilhos. Não se sabe como compatibilizar o “pacto”, mesmo a 26, com os tratados a 27, não se sabe como, em muitos países, vão “passar” as medidas do “pacto” que são ou inconstitucionais, ou necessitam de revisões constitucionais. A começar na Alemanha, a continuar na Irlanda onde deverá haver referendo, e a acabar em Portugal, onde Passos Coelho assumiu compromissos constitucionais sem ter autoridade para isso e sem o apoio do PS. Na Polónia, há um forte movimento de repúdio do “pacto”, e em França o líder do PS que poderá ganhar as eleições a Sarkozy já disse que o iria rever. 

Nem sequer é preciso ser muito clarividente para perceber que, cada dia que passa só trará novos problemas e dificuldades para o “pacto”, e não o caminho róseo que os dirigentes que o aceitaram na Cimeira, pensavam que iria ter, com a inconsciência que o Diabo lhes deu de presente. E o mesmo Diabo também lhes deu outra coisa, os mercados. Esses viram a cimeira com um cruel realismo, como o desastre que foi. E não é que têm razão? 

(Versão do Público de 17 de Dezembro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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