ABRUPTO

4.12.11


IR MAIS LONGE DO QUE A GESTÃO DA MASSA FALIDA
 
Na Quadratura do Círculo comparei o modo como o primeiro-ministro falou na entrevista da SIC com o discurso de um gestor enviado para pôr em ordem uma empresa que está falida. Como de costume, as almas frágeis que acham que qualquer crítica à actual governação é "socratismo" arrepelaram-se em saúde pelo atrevimento. Há-de passar-lhes e ainda verei muitos deles, quando vier o tempo certo, dizer cobras e lagartos do actual Governo, quando este estiver na mó de baixo. Aconteceu o mesmo com os louvaminheiros de Sócrates, que, quando viram que ele ia cair, se passaram com armas e bagagens para a oposição. Os nossos costumes são estes, a fome é muita e os bens escassos, como sempre repito.

A comparação com um administrador ou um gestor de falências, ou da "massa falida", tem razão de ser perante uma entrevista em que o economês se tornou o politiquês. A redução da política a uma determinada forma de pensar a economia, vista da perspectiva de uma empresa e não de um país, uma nação, é um erro ou uma perigosa errância política. Embora pareça desprovido de ideologia e passe por ser uma linguagem "científica" com a intangibilidade que habitualmente se dá à ciência (como à cultura), o economês-politiquês é profundamente ideológico e bem pouco científico, contém um programa público e uma agenda parcialmente escondida, e é típico também dos momentos de transição, de "ajustamento".

Quem diga, e há quem o diga, que o país deve ser administrado como uma empresa não está no terreno da democracia porque uma empresa não é democrática, nem tem que ser. Pelo contrário, numa democracia que quer sobreviver, o discurso político tem que ser dador de sentido, tem que relacionar o que se decide com o "bem comum" que se deseja, e é a ultima ratio dessa frágil construção cultural que é a democracia. Isto não significa que se seja demagogo, mentiroso, enganador e vendedor de ilusões, tudo aquilo de que tirámos um curso nos últimos seis anos, mas que é obviamente um risco muito real em democracia. O populismo e a demagogia são talvez, a médio prazo, o maior risco da política portuguesa, e o politiquês-economês prepara-lhe muito bem a cama.

O que faz um administrador de falências, nomeado pelo tribunal, aqui pela troika, e pelo voto de rejeição de Sócrates? De um modo geral o resultado dessa actividade é o encerramento da empresa, ou em alternativa a "reestruturação" da empresa, ou como agora se diz, o "ajustamento". Fazem-se em primeiro lugar despedimentos, e/ou abaixamento de salários e mudanças nas condições de trabalho para a pequena minoria que fica na fábrica ("flexibiliza-se a mão-de-obra"), vendem-se instalações e máquinas que o patrão não levou para um offshore (como nas privatizações), e, nalguns casos, se se conseguir evitar a falência imediata, tenta-se mudar de ramo (ou de "negócio"). Depois, paga-se aos credores, em muitos casos primeiro aos credores externos e só depois aos trabalhadores, que podem esperar mais de dez anos para receber a sua parte da "massa falida"

Eu não digo que esta actividade por parte de um administrador com esta incumbência infeliz seja um mal ou em erro em si, e muito menos a desqualifico "moralmente" como faz o Bloco de Esquerda, que transformou a sua crítica ao capitalismo num ajuste de contas moral pela "justiça na economia". Mas governar um país em democracia não pode ficar a este nível de propostas e de discurso, porque isso significa governar mal e falhar mesmo nos objectivos propostos.

Voltemos à entrevista da SIC, somando-lhe os discursos do ministro das Finanças e das afirmações avulsas do ministro da Economia, e encontramos o pano de fundo deste economês-politiquês e também a enorme ambiguidade em que assenta o actual discurso do poder. Ele centra-se na austeridade, ou seja, na passagem dos portugueses por um período de perda do seu rendimento, um empobrecimento, associado a uma reforma do Estado que lhe modifique o carácter de modo a dar-lhe a medida dos nossos recursos. Este discurso tem duas partes, uma sobre as pessoas, outra sobre a instituição Estado, mas indissoluvelmente associadas num mesmo pensamento sobre a economia e a política. Deixemos agora de lado a questão do Estado, para nos concentrarmos no discurso governamental sobre a austeridade sobre as pessoas, o empobrecimento anunciado.

Ele é apresentado como inevitável e aí eu não divirjo: as alternativas à austeridade, no quadro do cumprimento do acordo com a troika, são mais austeridade, associada ao caos social e a uma penúria garantida para muitos anos. Pode ser que a austeridade, no contexto do cumprimento do acordado com a troika, conduza também ao caos social e à penúria. Mas entre um programa de austeridade e um programa de "renegociação da dívida", ou de "não pagamos", o segundo é uma certeza do desastre, e o primeiro apenas uma probabilidade.

Dito isto, há que analisar o que está em cima e em baixo da mesa, no modo como o Governo pensa a austeridade. Aqui há um problema: é que os nossos governantes têm sido ambíguos, oscilando entre proclamações ideológicas, em que o economês é o veículo, e tentativas de acalmar a contestação social, em que o politiquês é o veículo. Se formos ver o papel da austeridade, ou melhor do empobrecimento, no discurso governativo nós encontramos uma oscilação contínua entre a noção de que a austeridade/empobrecimento é um estado virtuoso, e a noção de que a austeridade é um instrumento. Num caso, a austeridade é um estado (um status), noutro a austeridade é uma necessidade temporária.

Isto dá origem a muitas flutuações no discurso governativo como é o caso do fim dos subsídios do Natal e de férias, apresentados ao mesmo tempo como temporários e como exemplo de como o Estado deve "emagrecer", acabando com a distância entre os privilégios dos funcionários públicos e os trabalhadores do privado. Se a austeridade é um estado virtuoso, em que existe uma adequação do Estado à nossa debilidade económica, a "viver com as nossas posses", então não se compreende que daqui a dois anos voltem os subsídios cujo corte foi apresentado como estrutural. Se, pelo contrário, o corte foi conjuntural e se destina apenas ao cumprimento das obrigações do défice, então, uma vez cumprido o acordo com a troika, esses subsídios devem ser repostos, que é o que primeiro-ministro e ministro das Finanças têm dito. O mesmo se aplica aos impostos apresentados como extraordinários e temporários, adoçados pela designação "de solidariedade", que terão prazo para acabar. São duas políticas muito diferentes, uma de conjuntura, outra remetendo para uma ideia, ou, se se quiser, para uma ideologia, sobre o papel do Estado, da sociedade, das empresas e dos trabalhadores.

Neste último caso, em que a austeridade é vista como um instrumento de reforma, logo como uma virtude, então é necessário discutir não só as medidas mas também o modo de as apresentar como temporárias quando não serão o modelo de sociedade para que se caminha e os seus efeitos sociais. E aí há todo um vasto conjunto de contradições que mereceriam mais discussão, mas que apenas enuncio.

Por exemplo, como se pode pensar numa sociedade empresarial dinâmica e competitiva, sem classe média forte, exactamente uma das vítimas principais desta austeridade e que vai sair depauperada destes anos? O modelo da nossa competitividade vai assentar nos salários baixos ou numa qualificação da mão-de-obra? Ora, a degradação do sistema de ensino, já de si ineficaz, resultante inevitável dos cortes na educação, tem como consequência que vamos recuar num dos principais óbices à nossa competitividade, a baixa qualificação da mão-de-obra.

Estamos ou não a gerar uma sociedade em que as disparidades sociais são ainda mais acentuadas, logo com muito maior conflitualidade inscrita? É que "embaratecer" a mão-de-obra, ou como agora se diz "fazer uma desvalorização fiscal", vai aumentar o fosso entre os mais ricos e os mais pobres e acentuar as dualidades flagrantes da sociedade portuguesa.

Estamos a defender o emprego e vamos destruir um dos principais reservatórios desse emprego que é a restauração (e, diga-se de passagem, a economia paralela)? Ou será que por detrás do ataque fiscal à restauração existe uma ideia de que ela representa um atraso no nosso tecido empresarial, que consome recursos que são precisos para reindustrializar, mesmo com empresas de pequena dimensão, e que seria melhor para o pais que o parco dinheiro com que se abre um café ou um restaurante de esquina deveria ir para criar uma empresa de costura ou de sucatas ou de rolhas, como acontecia por todo o lado no concelho de Vila da Feira, ou a fazer cobertores como durante a guerra colonial? É que, se é assim, não se percebe nem a política, nem os seus instrumentos sociais.

É por tudo isto que é preciso exigir mais ao Governo do que a gerência da "massa falida".

(Versão do Público de 3 de Dezembro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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