ABRUPTO

8.11.11


OS GREGOS FIZERAM TUDO MAL E NO ENTANTO...

 Votos na democracia ateniense a favor do ostracismo.

Os gregos fizeram tudo mal, a começar por Papandreou, mas o seu anúncio de um referendo serviu para chamar a atenção da cada vez maior contradição entre o "processo europeu" e a soberania dos Estados, a democracia e a política democrática. Não é novidade para quem anda há muitos anos a chamar a atenção para as tendências anti-democráticas do processo europeu, mas talvez sirva agora para despertar os incautos. Nos últimos anos, a "construção europeia" tem sido essencialmente uma desconstrução da Europa dos fundadores, quanto às intenções, quanto ao método, quanto aos procedimentos. Substitui-se uma construção prudente e defensiva, que avançava lentamente e só perante grandes consensos dos Governos e dos povos, sublinho dos povos, para uma ideia iluminista de engenharia política utópica, sem legitimação popular e sem clareza e transparência por parte dos Governos. 

Escrevo isto no mais europeísta dos jornais portugueses, onde pouco se leu e muito menos se ouviu as críticas dos eurocépticos, que se revelam hoje mais sábias do que as proclamações optimistas dos "constitucionalistas europeus". Quando, no processo da Constituição Europeia, que implicava profundas mudanças na soberania dos Estados europeus e criava os fundamentos de uma entidade política nova com poder sobre os Estados soberanos, era evidente que era um erro avançar sem uma forte legitimação popular, exactamente o contrário do que se fez, após o fantasma do "canalizador polaco" ter pulverizado o iluminismo europeísta. Os governantes mais prudentes teriam travado e pensado de novo, os que nos caíram em sorte resolveram acelerar em vez de travar. Começou então uma correria de ludibrio e dolo, de que o melhor exemplo é o Tratado de Lisboa, aprovado com mil e um truques com um único objectivo: impedir as consultas populares que a rejeição da Constituição Europeia mais do que nunca obrigava, para dar legitimidade a um processo já ferido. Quebrou-se assim o elo de confiança entre o projecto europeu e os povos europeus, que, umas vezes melhor, outras pior, existia desde a II Guerra Mundial na Europa não-comunista. Associado ao processo de unificação europeia depois da queda do Muro de Berlim - algo que a NATO sempre conseguiu melhor do que a UE -, avançou-se a toda a velocidade numa cegueira que perseguirá sempre os seus responsáveis. Apenas a Alemanha se portou bem ao anexar a sua metade até então ocupada e pagar o preço altíssimo para a unificação que ainda hoje os alemães ocidentais pagam.

Asneira sobre asneira, aceitou-se que a Grécia entrasse no euro quanto toda a gente sabia que o dracma e a economia grega não reuniam as condições para a entrada, fez-se entrar na UE um conjunto de países de Leste com democracias frágeis, como a Roménia e a Bulgária, andou-se à roda dos problemas da agricultura polaca para evitar colocar em causa a agricultura francesa, alienou-se a Turquia, a quem se prometeu a entrada para depois a adiar indefinidamente, andou-se a brincar à competição com os EUA, ao mesmo tempo que todos os projectos credíveis para uma defesa europeia ficavam no papel, etc., etc. O que sobrou funciona bem, mas não é recomendável: a PAC de que ninguém fala mas continua a subsidiar um pequeno grupo de europeus, a indústria de armamento, que continua a vender armas aos gregos ao mesmo tempo que lhes exige a máxima contenção de despesas, o aumento da burocracia europeia como Serviço Europeu de Acção Externa, o único projecto efectivo da UE em política externa que avança.

O que os gregos sobressaltaram com a proposta de referendo foi a lógica iluminista desta série de asneiras, mais do que as porem em causa, porque o estado de necessidade do país implica engolir muita coisa. O que perturba governantes, que se comportam ou como altos funcionários europeus, ou como membros de um directório, ou como as duas coisas ao mesmo tempo, foi a súbita emergência da política, da democracia, da soberania, por esta ordem. Chamaram à política, politiquice, à democracia, irresponsabilidade e à soberania, "deslealdade" com o projecto europeu. E reagiram em consequência com uma violência pública de que só me recordo com as declarações de Chirac literalmente "passado" quando meia dúzia de chefes de Estado e de Governos europeus expressaram solidariedade com os EUA na guerra do Iraque. Papandreou vergou-se à pressão, mas obteve uma declaração de apoio às medidas de austeridade por parte da oposição grega, ligada aos partidos de Sarkozy e de Merkel no PPE, mas que estes nunca tinham conseguido colocar ao lado dos socialistas do PASOK, e abriu caminho para novas eleições.
 

Para os portugueses, o que se passa na Grécia deve merecer algum cuidado e não apenas alinhar no coro de condenações, porque nós próprios fizemos algo de semelhante no período crucial em que foi pedida a ajuda externa, chumbando um plano de austeridade acordado com a Europa, o PEC IV, e levando a eleições em pleno período de crise financeira. O resultado foi positivo com um Governo com maior estabilidade institucional, com uma sólida maioria parlamentar e com um PS domado. Mas, quando se soube que o PSD iria derrubar o Governo, a senhora Merkel deu uma descompostura a Passos Coelho, que é da mesma natureza da que foi dada a Papandreou.

A ordem é simples: deixem-se lá de fazer política se ela introduz ruído no que decidimos, e cuidado com as eleições porque o resultado é sempre incerto. Nestas alturas quem deve, obedece e paga primeiro, e só depois consulta o povo, caso ainda sobrar democracia. E depois, há sempre o risco de o exemplo pegar e haver em vários países quem queira levar à consulta popular decisões que franceses e alemães se arrogam o direito de tomar. Quer seja manter-se no euro, a pergunta sugerida aos gregos, quer seja boicotar toda a ajuda externa como os finlandeses estiveram a um átomo de decidir. É que os referendos têm a perversa tendência de responder que não às perguntas a que os Governos e a UE querem que se responda sim. Mais vale fugir deles como o diabo da cruz. Dos referendos, de eleições, de tomadas de posição dos Parlamentos, de qualquer coisa que coloque um grão de areia no caminho imperial da UE. 

No caso grego, a decisão de propor um referendo veio em conjunto com a demissão de todas as chefias militares, o que também devia iluminar as cabeças europeístas, a não ser que não tenham nada contra em negociar planos de austeridade com um grupo de coronéis, em vez de ser com governantes eleitos, por muito maus e erráticos que ele sejam. E eu suspeito de que, se não fossem as conveniências, os burocratas de Bruxelas prefeririam a cadeia de comando militar, para as suas ordens, a essa coisa menor que é a política. Na Grécia duas instituições têm muito poder, em nada parecido com o que acontece na maioria dos países europeus: a Igreja Ortodoxa, e o Exército. A Ortodoxia é um factor importante de identidade nacional, são-lhe reconhecidos direitos de um quase-Estado no monte Athos e mosteiros vizinhos e é a razão por que num país da UE não se pode construir uma mesquita em Atenas. O segundo é poderoso porque existe um inimigo externo, a Turquia, e em menor grau todos os que ameaçam ou limitam a ideia que os gregos têm do seu território natural e cultural, sejam os macedónios, sejam os albaneses que "ocupam" o Epiro do Norte. E teve, há 60 anos, uma dura guerra civil, que só acabou com uma intervenção estrangeira, o que ajuda a explicar a força do radicalismo de esquerda na vida política. 

A Grécia é, por tudo isto e muito mais, um país complicado, no que não se diferencia da Alemanha ou da França, numa Europa de países complicados por razões nacionais, culturais e económicas. Os gregos estão há muito tempo a fazer erros clamorosos no plano económico e a alimentar um Estado social sem meios para subsistir. Mas a Europa fechou sempre os olhos a essa realidade que agora lhe cai em cima sob a forma da falência grega arrastando grandes bancos e o euro. Mas a pior maneira de a resolver é responder como se as nações europeias deixassem de ter direito á política e à democracia, porque o que seria bom era ter lá um Gauleiter qualquer. E seria bom não confundir sermos responsáveis com comer tudo que nos põem no prato. É que também há um Gauleiter para nós.

(Versão do Público de 5 de Novembro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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