ABRUPTO

14.11.11


O QUE REPRESENTAM OS "INDIGNADOS"


As caixas do correio electrónico estão cheias de centenas de mensagens reproduzindo um texto não assinado, mas de autoria no chamado movimento dos "indignados" que tem organizado manifestações enquadradas num movimento internacional com várias designações, mas nas quais a palavra "ocupação" é central. As mensagens electrónicas circulam com uma série de títulos de que são exemplo: "suspensão do pagamento da dívida já!", "ocupem as ruas, ocupem o mundo", "culpados responsabilizados e punidos", "democracia directa já". O texto original parece não ter título e passamos a identificá-lo como "a Situação", da primeira frase: "A situação que Portugal atravessa..."

O movimento dos "indignados" é apenas uma parte dos movimentos sociais de protesto que têm vindo a sair à rua nestes tempos de crise, e é claramente distinto dos protestos que sindicatos e partidos como o PCP têm vindo a promover. Embora haja uma franja comum, mais ligada ao Bloco de Esquerda, a unificação dos dois sectores do protesto social ainda não se deu e existem profundas diferenças de origem social, composição etária, escolaridade e "cultura" organizacional e política.

O movimento dos "indignados" (uma classificação que merecia mais precisão) resulta de uma amálgama de vários movimentos inorgânicos que têm expressão na Rede e no Facebook, com papel activo de remailers, muitos dos quais radicais de direita, mais o M12M, o Ferve, o Precários Inflexíveis, movimentos da "geração à rasca", na maioria ligados ao Bloco de Esquerda, e depois grupos politizados mais tradicionais da extrema-esquerda e da direita, incluindo os minoritários trotsquistas do BE, o colectivo da revista Rubra, a Ruptura/FER, o que resta do MRPP e do POUS, alguns grupos anarquistas e monárquicos, movimentos de género, feministas, LGBT, ecologistas, defensores dos direitos dos animais, e new age


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Comecemos pelo simples diagnóstico do texto: estamos numa crise internacional, cuja responsabilidade "exclusiva" é "da implantação de uma economia neoliberal, dependente exclusivamente da atitude corrupta de banqueiros privados irresponsáveis e de governantes que, consecutivamente, têm alimentado os seus bolsos". A crise não é, em nenhuma circunstância, responsabilidade do "povo" "porque gastou mais do que devia nos últimos anos ". O novo Orçamento dá continuidade à mesma política, com a agravante de "planear privatizar bens comuns tão necessários como a água", um dos "claros exemplos da corrupção da máquina política". Isto nada tem de original, é, em termos muito simplificados, o mesmo que o PCP, a ala esquerda do PS e o BE dizem.

Que soluções são propostas para esta crise? A "suspensão do pagamento da dívida pública já", uma auditoria "cidadã" para se "apurar que parte da dívida pública portuguesa é, de facto, da responsabilidade dos cidadãos" (...) e, "responsabilizar os verdadeiros culpados já". Esta linha da responsabilização (que pelos vistos influenciou a JSD...) exige "uma auditoria ao funcionamento das instituições públicas, com apuramento de ilegalidades e responsabilidades criminais e que conduzirão à suspensão do pagamento de dívida nos casos pertinentes, nomeadamente no caso das parcerias público-privadas e aquisições fraudulentas". O resultado antecipado é "que muitos dos cidadãos não são responsáveis pelo grosso da dívida e de que a acção irresponsável dos bancos privados teve consequências nefastas para os países". O vocabulário moralista é o do Bloco de Esquerda, a reivindicação da criminalização da política é do populismo de direita e de esquerda.


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Esta vulgata sobre a crise não se distingue do que para aí circula, populista, demagógico e inconsequente. Porém onde "A Situação" e os "indignados" vão mais longe é na rejeição do "sistema que mina o verdadeiro modelo de democracia", ou seja, a democracia parlamentar. A defesa da "democracia directa" está no centro das ideias dos "indignados": "A actual democracia é baseada numa sociedade por acções de responsabilidade muito limitada: os políticos e banqueiros lucram, nós pagamos." No meio da confusão do texto expõe-se o que se pretende "alterar": "É preciso que o povo comece a ter mais voz, mais participação e mais consciência política - para que não continuemos a depender de um Parlamento que só em parte é eleito por nós e que continua a não defender os interesses comuns."

 

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Num certo sentido, eles são os filhos primitivos do Bloco de Esquerda, que tomam à letra as injunções de Louçã contra "economia injusta" e que não percebem que ele só diz isto assim porque não pode enunciar a sua real política no seu vocabulário canónico. Os mentores e dirigentes do Bloco são marxistas que não ousam chamar o nome verdadeiro ao que defendem, embora saibam muito bem qual é esse nome. A paráfrase moralista em que envolveram o seu marxismo comunica bem com o catolicismo esquerdista, com uma new wave vagamente religiosa e cósmica, ecologista e uma muito Zeitgeist recusa da ordem e do Estado. Enquanto os pais do Bloco de Esquerda conhecem muito bem as suas fronteiras com o radicalismo de direita, os seus filhos "indignados" comunicam sem dificuldades com todas as ideias antidemocráticas que para aí circulam: são contra os partidos, contra a "política", contra os "políticos", contra o parlamento, como são contra os bancos, os ricos e os polícias. 

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(Versão do Público de 12 de Novembro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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