As
caixas do correio electrónico estão cheias de centenas de mensagens
reproduzindo um texto não assinado, mas de autoria no chamado movimento
dos "indignados" que tem organizado manifestações enquadradas num
movimento internacional com várias designações, mas nas quais a palavra
"ocupação" é central. As mensagens electrónicas circulam com uma série
de títulos de que são exemplo: "suspensão do pagamento da dívida já!",
"ocupem as ruas, ocupem o mundo", "culpados responsabilizados e
punidos", "democracia directa já". O texto original parece não ter
título e passamos a identificá-lo como "a Situação", da primeira frase:
"A situação que Portugal atravessa..."
O movimento dos
"indignados" é apenas uma parte dos movimentos sociais de protesto que
têm vindo a sair à rua nestes tempos de crise, e é claramente distinto
dos protestos que sindicatos e partidos como o PCP têm vindo a promover.
Embora haja uma franja comum, mais ligada ao Bloco de Esquerda, a
unificação dos dois sectores do protesto social ainda não se deu e
existem profundas diferenças de origem social, composição etária,
escolaridade e "cultura" organizacional e política.
O movimento
dos "indignados" (uma classificação que merecia mais precisão) resulta
de uma amálgama de vários movimentos inorgânicos que têm expressão na
Rede e no Facebook, com papel activo de remailers, muitos dos
quais radicais de direita, mais o M12M, o Ferve, o Precários
Inflexíveis, movimentos da "geração à rasca", na maioria ligados ao
Bloco de Esquerda, e depois grupos politizados mais tradicionais da
extrema-esquerda e da direita, incluindo os minoritários trotsquistas do
BE, o colectivo da revista Rubra, a Ruptura/FER, o que resta do
MRPP e do POUS, alguns grupos anarquistas e monárquicos, movimentos de
género, feministas, LGBT, ecologistas, defensores dos direitos dos
animais, e new age.
No seu conjunto eles são a mais
genuína expressão pública do protesto da classe média "baixa", no jargão
do marketing e das audiências, ou seja, aquilo que no jargão marxista é
a pequena-burguesia. A origem de classe, a localização urbana e
suburbana, a composição etária (mais jovens), a composição em termos de
formação (maior escolaridade e educação formal, professores,
"activistas" culturais, intelectuais, "artistas", ou melhor,
"intermitentes do espectáculo"), a estética do protesto, tudo gera uma
identidade própria, como já referi, muito distinta da que sai à rua nas
manifestações da CGTP.O texto que estamos a comentar, a
"Situação", é um típico exemplo de um escrito intelectual para
intelectuais, que parte do pressuposto que é para ser lido na Internet,
com ligações que funcionam como citações, por exemplo de Paul Krugman, e
que implicam um conhecimento, pelo menos mediático e online, de
alguns casos como o da Islândia. A referência a Paul Krugman funciona
hoje como canónica para a esquerda e mistura-se com uma mescla de ideias
muito superficial e de que não é difícil encontrar as fontes. O
resultado é um texto muito pobre do ponto de vista analítico e político,
mesclando exigências populistas, que têm a sua origem no Correio da Manhã e nos remailers,
e um vocabulário esquerdista que em Portugal tem uma genealogia, entre
outros, no "pintasilguismo", vivo no pensamento de Boaventura de Sousa
Santos.
Comecemos pelo simples diagnóstico do texto: estamos
numa crise internacional, cuja responsabilidade "exclusiva" é "da
implantação de uma economia neoliberal, dependente exclusivamente da
atitude corrupta de banqueiros privados irresponsáveis e de governantes
que, consecutivamente, têm alimentado os seus bolsos". A crise não é, em
nenhuma circunstância, responsabilidade do "povo" "porque gastou mais
do que devia nos últimos anos ". O novo Orçamento dá continuidade à
mesma política, com a agravante de "planear privatizar bens comuns tão
necessários como a água", um dos "claros exemplos da corrupção da
máquina política". Isto nada tem de original, é, em termos muito
simplificados, o mesmo que o PCP, a ala esquerda do PS e o BE dizem.
Que
soluções são propostas para esta crise? A "suspensão do pagamento da
dívida pública já", uma auditoria "cidadã" para se "apurar que parte da
dívida pública portuguesa é, de facto, da responsabilidade dos cidadãos"
(...) e, "responsabilizar os verdadeiros culpados já". Esta linha da
responsabilização (que pelos vistos influenciou a JSD...) exige "uma
auditoria ao funcionamento das instituições públicas, com apuramento de
ilegalidades e responsabilidades criminais e que conduzirão à suspensão
do pagamento de dívida nos casos pertinentes, nomeadamente no caso das
parcerias público-privadas e aquisições fraudulentas". O resultado
antecipado é "que muitos dos cidadãos não são responsáveis pelo grosso
da dívida e de que a acção irresponsável dos bancos privados teve
consequências nefastas para os países". O vocabulário moralista é o do
Bloco de Esquerda, a reivindicação da criminalização da política é do
populismo de direita e de esquerda.
Para além dos múltiplos
advérbios "já", uma das mais adolescentes das palavras, o modelo de
resolução da crise que é apontado é o da Islândia: "Enquanto os demais
resgataram os banqueiros e fizeram o povo pagar o preço, a Islândia
deixou que os bancos quebrassem e expandiu sua rede de protecção
social." Esta "solução", que "A Situação" pretende legitimar, é
interessante em termos daquilo que os marxistas chamariam "interesses de
classe". Não é a nacionalização da banca que é proposta (a solução do
PCP do BE, partidos de tradição marxista e leninista), mas sim a sua
falência, na expectativa de que essa falência traria apenas a
insolvência dos banqueiros e dos capitais especulativos. Talvez fosse
bom que os autores deste texto perguntassem aos seus pais se gostariam
de ver desaparecer as suas magras economias e PPR depositados na Caixa
Geral de Depósitos, evaporarem-se de um dia para o outro, quando os
bancos "quebrassem".
Esta vulgata sobre a crise não se distingue
do que para aí circula, populista, demagógico e inconsequente. Porém
onde "A Situação" e os "indignados" vão mais longe é na rejeição do
"sistema que mina o verdadeiro modelo de democracia", ou seja, a
democracia parlamentar. A defesa da "democracia directa" está no centro
das ideias dos "indignados": "A actual democracia é baseada numa
sociedade por acções de responsabilidade muito limitada: os políticos e
banqueiros lucram, nós pagamos." No meio da confusão do texto expõe-se o
que se pretende "alterar": "É preciso que o povo comece a ter mais voz,
mais participação e mais consciência política - para que não
continuemos a depender de um Parlamento que só em parte é eleito por nós
e que continua a não defender os interesses comuns."
Os autores
de "A Situação" não são revolucionários: não querem derrubar o
capitalismo, apenas fazer falir a parte "corrupta" do sistema, e pelo
caminho não terem que pagar nada; não querem uma ditadura do
proletariado, nem na fórmula edulcorada que hoje o PCP e o Bloco usam,
mas um vago governo em "assembleia permanente" em que os "acampados"
falam muito a sério e votam ainda mais a sério, olhando para a
Assembleia da República onde está "um Parlamento que só em parte é
eleito por [eles]", presumo que o PCP, o Bloco e os Verdes, e outra
parte representa a corrupção e o Mal. Eles que estão ali à frente, em
muitos casos nem cem pessoas, consideram que a sua "Assembleia Popular"
representa a "democracia directa", onde o povo tem mais voz, mais
participação e mais consciência política".
Num certo sentido,
eles são os filhos primitivos do Bloco de Esquerda, que tomam à letra as
injunções de Louçã contra "economia injusta" e que não percebem que ele
só diz isto assim porque não pode enunciar a sua real política no seu
vocabulário canónico. Os mentores e dirigentes do Bloco são marxistas
que não ousam chamar o nome verdadeiro ao que defendem, embora saibam
muito bem qual é esse nome. A paráfrase moralista em que envolveram o
seu marxismo comunica bem com o catolicismo esquerdista, com uma new wave vagamente religiosa e cósmica, ecologista e uma muito Zeitgeist
recusa da ordem e do Estado. Enquanto os pais do Bloco de Esquerda
conhecem muito bem as suas fronteiras com o radicalismo de direita, os
seus filhos "indignados" comunicam sem dificuldades com todas as ideias
antidemocráticas que para aí circulam: são contra os partidos, contra a
"política", contra os "políticos", contra o parlamento, como são contra
os bancos, os ricos e os polícias.
Sem rigor poder-se-ia dizer
que são apenas "anarquistas", mas são outra coisa melhor expressa pela
designação subjectivista de "indignados". Não são enragés, mas
"indignados" com uma agenda em que a indignação é muito instrumental,
uma agenda confusa, caótica, simplista até dizer chega, mas que
representa hoje a verdadeira força da "classe média baixa": na crise que
vivemos é uma força com futuro e, quando abandonar o folclore dos
"indignados", e se juntar nas ruas às filas disciplinadas da CGTP, como
fizeram os professores, então a coisa fia mais fino