ABRUPTO

27.11.11


EMPOBRECER OS BOLSOS E A CABEÇA 



A greve veio e a greve passou. Andámos umas semanas a ouvir disparates de escasso verniz democrático sobre a decisão da CGTP e da UGT de convocarem uma greve geral, explicando-nos, com pouco contido furor, todos os malefícios da dita para o país, de como se tratava de um acto de total irrelevância, perturbador da vontade dos portugueses que queriam trabalhar para o progresso da nação e da troika, um crime contra a economia, uma aberração estratégica, um atentado contra o unanimismo que deve ser mantido a todo o custo "para os mercados".

Façamos aquilo que os cientistas chamam um thought experiment, com o tempo a andar para trás. Andemos no tempo para o período antes da comunicação dramática do primeiro-ministro sobre os cortes na função pública e outras medidas de austeridade e aumento de impostos. Aquelas propostas foram para todos uma surpresa, tanto mais que a proposta do corte de meio subsídio de Natal foi apresentada como excepcional apenas para o ano de 2011.

Imaginemos que o mesmo primeiro-ministro ou o ministro das Finanças disseram nesse fim de tarde cruel que era preciso cortar um dos subsídios na função pública, o subsídio de férias por exemplo, toda a gente louvaria a sageza e a necessidade absoluta desse corte. E se houvesse um economista mais duro e que dissesse que era preciso cortar dois, o de férias e do Natal, haveria um coro a dizer asneira, excesso, atentado contra a economia, atentado contra o mínimo social que o Governo benevolamente queria garantir contendo os sacrifícios ao "indispensável". Seria então o corte único, o "indispensável". O mesmo se passaria se o mesmo primeiro-ministro dissesse que era preciso cortar três meses, dois de subsídio e um de salários na função pública, com o mesmo choque e pavor que suscitou o corte de dois e que suscitaria o corte de um. Estaria hoje toda a gente a dizer que tinha mesmo que ser assim. Muito bem, muito bem!

Estamos num tempo de não-pensamento, mas de obediência e ordem e em que o hegelianismo de "o que tem que ser tem muita força" tem muita força. Aliás, como de costume, o que "o poder disser que tem que ser é que tem muita força". Como o debate escasseia e é puramente posicional - quem não é por nós é contra nós, ou se é da situação ou da oposição, ou se é do Sócrates ou do Passos Coelho -, tudo é simples, tudo é a preto e branco e que ninguém pie. E depois há toda uma violência verbal incontida que jorra logo por todo o lado, quando aparece qualquer dissenso, qualquer objecção e dúvida. O Presidente da República já provou desse cálice de fel, Rui Rio, Manuela Ferreira Leite e eu próprio, o quarteto maldito pelos serventuários do poder, mancomunado numa qualquer conspiração, merece logo os mais violentos epítetos. O não-pensamento acompanha muitas vezes a raiva, vem nos livros para quem os costuma ler, esse hábito demasiado subversivo em tempos de miséria intelectual.

Voltemos à greve, porque a greve, para além das suas razões ou irrazões, para além de como foi ou podia ter sido, toca na intangibilidade do poder, perturba, incomoda. Num programa de televisão disse umas coisas de trivial doutrina democrática sobre o direito à greve, que, imaginem!, são muito próximas do que Sá Carneiro disse em seu tempo. Ouviram-se de imediato as bocas espumarem com "uma vez comunista, sempre comunista". Como eu nunca fui do PCP, que é o que para eles significa ser "comunista", presumo que se devem referir a Passos Coelho, que, esse sim, foi comunista de papel passado. Eu fui outra coisa certamente pior, maoísta, radical, ultracomunista, esquerdista, e, portanto, na versão muito comum de que há uma psicologia da patologia ideológica, uma espécie de malformação genética, como os cromossomas de Lombroso, a ideia de que uma vez uma coisa, sempre essa mesma coisa permanece firmemente entrincheirada nos ataques ad hominem. Curiosamente nunca se diz de ninguém que "uma vez fascista, sempre fascista", talvez porque à direita faz-se muito bem essa reciclagem sem memória nem culpa. Gente que andou de braço erguido e palma estendida na "saudação romana" antes e depois do 25 de Abril pelos vistos não padece desta patologia ideológica, que só existe para o lado oposto, para o lado do Mal puro.

Mas quem é que podia deixar de esperar que houvesse uma greve? Só quem pretendesse que subitamente a sociedade portuguesa prescindisse da conflitualidade social e que muitos milhões de portugueses que estão a empobrecer se sentassem numa sala escura, abatidos e deprimidos, à espera da salvação. É verdade que a greve não foi "geral", muito longe disso. É igualmente verdade que a acção sindical está confinada a certos sectores da sociedade portuguesa, a certas faixas etárias, a certos grupos de trabalhadores. É também verdade que certos interesses representados nos sindicatos são conservadores e um bloqueio a medidas que podiam ser necessárias para o progresso do país. É verdade que os jovens que estão do lado dos "indignados" são também "prejudicados" pelos pais que estão do lado dos sindicatos. Mas que se espera? Que um estivador, ou um maquinista da Carris, ou um professor, ou um oficial de justiça aceitem perder salários e regalias, para que o filho licenciado entre aonde? Numa fábrica, que não há, no funcionalismo público que não recruta, numa câmara municipal, sem ser com cunha? By the book, as coisas deveriam funcionar assim, mas hoje o grau de perturbação da sociedade e da economia está longe de o garantir. Por isso, em tempos de miséria, cada um agarra-se ao que tem. Sucede, queiramos ou não, que essa é a atitude mais racional que pode tomar.

Depois, há os argumentos quanto ao significado da dimensão da greve, para interpretar o impacto que pode ter na sua leitura política. Mas já que estamos numa de thought experiments, usemos outro. Vamos imaginar que todos os que não puderam deslocar-se ao local de trabalho eram contra a greve e apareceriam no emprego, o que significava que algumas escolas funcionariam, alguns hospitais idem e o mesmo pode ser dito para repartições e algumas áreas da função pública. Vamos também acrescentar aos não-grevistas alguns trabalhadores que têm receio dos piquetes de greve ou de serem mal vistos pelos seus colegas que fizeram greve. Sabemos que há sempre pessoas nesta situação e podemos acrescentá-las aos não-grevistas e engrossar as fileiras dos que podiam abrir uma escola ou permitir um julgamento num tribunal, diminuindo o impacto da greve. Estaríamos com uma greve ainda menos geral, em que apenas um núcleo duro de trabalhadores, mesmo assim mais vasto do que o normal, estaria disposto a fazer greve com todas as suas consequências, perda de salários e os olhos em cima do chefe ou do patrão.

Muito bem, agora vamos à cena contrária: vamos admitir que todos os que não fizeram greve porque não podiam perder o salário de um dia, e só mesmo esses, em estado de necessidade, se somavam aos grevistas. Convenhamos que seriam muitos e superariam certamente os que retirámos do número geral anterior de grevistas à força. E, por último, acrescentemos todos os que desejariam manifestar o seu protesto através de uma greve, caso não sentissem que haveria qualquer consequência na sua situação laboral, não seriam prejudicados nas suas carreiras e salários, e, acima de tudo, não seriam despedidos. Então, meus amigos, garanto-vos que a greve seria muito mais próxima do "geral" que esta foi e o sector privado teria uma importante participação. O país pararia mesmo.

O exercício assenta na vontade, como se esta fosse pura e simplesmente isenta de consequências negativas, o que não é do domínio deste mundo e muito menos da conflitualidade social, que implica risco e custo. E é por isso que a greve é um direito fundamental de expressão de interesses numa sociedade democrática, constitucionalmente protegido, e esses interesses têm custos, como o tem a liberdade de expressão, de associação e as decisões dos eleitores. A greve teve custos e a decisão de votar Sócrates em 2009 também não teve? Em democracia os "custos" dos direitos não os põem em causa e é por isso que há para aí uma vaga antidemocrática, demasiado unanimista, que nos empobrece a cabeça numa altura em que também empobrecemos nos nossos bolsos. E a verdade é que o empobrecimento do pensar, a raiva contra o dissenso, o unanimismo do único, tem efeitos ainda mais devastadores do que a troika. E para mim já me basta esta, para que agora me ponha na fila do rebanho. Tem também custos, mas quero lá saber.

(Versão do Público de 26 de Novembro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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