ABRUPTO

6.10.11



  O "ENRIQUECIMENTO ILÍCITO": 
LEGISLAR DE FORMA PERIGOSA E SEM QUALIDADE


A aprovação de mais um pacote legislativo, supostamente feito para combater a corrupção, agora em nome do combate ao enriquecimento ilícito, é mais um passo para atrasar, complicar, evitar o combate contra a corrupção. A percepção pública é pelo rótulo: como está lá o título de "enriquecimento ilícito", pensa-se que se avançou no ataque ao fenómeno, quando o que se fez foi legislar sob pressão da demagogia, provavelmente de forma inconstitucional, e pondo em causa princípios do Estado de direito, em particular o do ónus da prova, um adquirido civilizacional que, de forma ligeira, foi deitado pela borda fora.

A partir de agora não é o Estado que tem que provar a culpa, é um cidadão que tem que provar que é inocente. Mas, como é contra os "políticos", está tudo bem, até o linchamento em praça pública se pode admitir. O que o cidadão comum não compreende são duas coisas: esta legislação é tonitruante nos rótulos, mas ineficaz na prática; hoje são os "políticos" o alvo, amanhã será o homem comum. Esta legislação é sempre fácil de aprovar, porque os políticos demagogos sabem que assim se sacia a voracidade demagógica e que não existe qualquer consequência prática de leis deste tipo.

De há duas décadas para cá soma-se legislação contra a corrupção respondendo ao clamor público com leis sobre leis, mas não se conhecem resultados efectivos da sua aplicação. Uma vez aprovada é esquecida de imediato e a vox populi passa para outra reivindicação, muitas vezes agitada pelos próprios políticos uns contra os outros, sem que haja um efectivo adquirido na luta contra a corrupção. Quando inquiridos directamente, os principais responsáveis do combate contra a corrupção, magistrados e polícias com provas dadas e resultados sustentados em tribunal por condenações, sobre o que é preciso fazer - pergunta que tive oportunidade de fazer na comissão sobre a corrupção na Assembleia -, quase ninguém respondeu que precisava de novas leis, mas sim de mais meios, mais peritos em análise de contabilidade, mais peritos financeiros, existência de informação unificada sobre contas bancárias, que evite andar a perguntar se o senhor X que está a ser investigado tem conta em Freixo de Espada à Cinta, ou em Vila Real de St. António, com o risco de pôr em causa o sigilo da investigação, melhor coordenação dos sistemas informáticos disponíveis, tudo, tudo, tudo, menos mais leis, mais novas leis. Muitos foram até ao ponto de dizer: nunca uma lei sobre o enriquecimento ilícito como tem vindo a ser discutida, inaplicável, e de impossíveis resultados probatórios, para além da óbvia inconstitucionalidade. Apesar de terem ouvido isto, o show mediático num congresso, ou numa campanha eleitoral, e a vontade de ficar bem com o Correio da Manhã, que conduziu uma campanha neste sentido, passa à frente de tudo. E o aplauso é fácil com medidas deste tipo, mesmo que os únicos políticos que foram para a prisão tenham ido por efeito de investigações bem feitas, sólidas e que suportam a prova do tribunal. Como também há muita negligência no Ministério Público, investigações mal feitas e descuidadas, campanhas e leis deste tipo são sempre bem-vindas, porque introduzem um facilitismo na acusação, que muitas vezes se basta pela sua publicidade, feita por magistrados que querem fazer política com os seus poderes, sem serem capazes de garantir provas sólidas e condenações.

Quem conhece de perto a vida política sabe que o problema da corrupção, incluindo a variante conhecida como enriquecimento ilícito, é muito grave. De uma ponta à outra, da base ao topo, o sistema político e em particular os partidos políticos estão ligados a actividades de tráfico de influências e de corrupção e este é um grande cancro da nossa vida pública. Não minimizo a gravidade do fenómeno, e por isso mesmo desejo que haja justiça e que os políticos desonestos vão parar à cadeia. Mas tenho poucas ilusões, porque existe uma tríade que os protege de forma quase absoluta: a incompetência e politização da justiça, que nada tem a ver com a inexistência de leis que permitam o combate à corrupção, um jogo de cumplicidades políticas ao mais alto nível partidário, e a promiscuidade entre políticos desonestos e a comunicação social.

E sobre esta tríade um manto ainda mais detestável, mas tão sólido como uma muralha de aço, a complacência pública face à corrupção. Quem, olhando os títulos dos jornais mais inflamados contra os corruptos e a virulência dos fora nas rádios ou das conversas de café sob o tema "São todos uns ladrões", pensa que existe uma verdadeira recusa social da corrupção está enganado. A regra é a complacência prática, quase em razão directa da virulência do discurso, como se sabe quando se vê políticos que praticaram fraude fiscal ou tráficos de influência conhecidos e mesmo admitidos em público serem de novo eleitos com confortáveis maiorias.

Quase todos os homens que conheço como tendo enriquecimentos inexplicáveis enquanto políticos no activo, uma impossibilidade prática sem crime, têm várias características em comum. Uma é a sua capacidade e habilidade de criarem redes de "amizade" transversais aos partidos políticos. Têm grande amigos sempre no partido adversário e vice-versa, uma excelente garantia de que funcionam mecanismos de protecção mútua. A isso acrescentam-se outro tipo de redes sociais, umas mais "discretas" do que outras, mas todas alimentadas de forma intensa. Almoços, jantares, casamentos, caçadas, clubes, campanhas de solidariedade, viagens em comum, representam não só uma rede de contactos eficaz, muito útil para o tráfico de influências, mas também para criar cumplicidades que legitimam carreiras e imagens públicas.

Outra é a permanente atenção para os aparelhos partidários, cujos caciques são cultivados e que encontram na primeira liga da corrupção uma miríade de favores que reforçam a segunda liga. Como os partidos políticos em Portugal detêm a hegemonia da representação política, para se chegar a um autarca, um secretário de Estado ou um ministro, o aparelho partidário usado quer como rede de influência, quer como força de pressão é fundamental.

Por fim, todos têm em comum o facto de manterem uma ligação muito próxima com a comunicação social, quase obsessiva. São fontes privilegiadas dos jornais, cultivam a amizade com os jornalistas, dão-lhes presentes, convidam-nos para viagens e, ou directa ou indirectamente, indicam muitos deles para lugares no Estado, em autarquias ou em empresas. Informações privilegiadas e favores circulam por esta rede nos dois sentidos. E, mesmo quando caem com escândalos públicos, o esquecimento vem quase de imediato. Todos conhecemos casos de pessoas que enriqueceram de uma forma que suscitou inquéritos judiciais, incluindo o conhecimento público detalhado de práticas inaceitáveis e que nem pelo facto de tal ser do domínio público nas primeiras páginas dos jornais deixaram de continuar ou até reforçar alegremente as suas carreiras partidárias e continuarem no jet set do dinheiro e do poder, sem qualquer consequência pública. De vez em quando, há azares e enormes tombos, mas isso não ilude o facto de pessoas, com biografias manchadas por fraudes públicas, não terem por isso qualquer penalização dentro dos partidos e na vida pública.

É por isso que eu passo por ter mau feitio e não me esqueço. Não me esqueço de quem andou a fugir ao Ministério Público pelas portas traseiras de uma autarquia, até à prescrição de um processo, e nada lhe aconteceu; de quem fugiu para o estrangeiro e voltou em glória; de quem tinha um batalhão de familiares a depositar cheques em cadeia de pequenas quantias que depois iam subindo de conta em conta; de quem começou a sua carreira com avenças de empresários do seu distrito que iam desembocar em perdões fiscais; de quem "ganhou" na bolsa de um dia para o outro para explicar riquezas milionárias; de quem trabalhou para bancos estrangeiros que são na realidade offshores, etc., etc. Nada disto é informação privilegiada, veio e está tudo na imprensa e, no entanto, nada aconteceu, nem acontece.

É exactamente pela repulsa que estes actos me causam e pela repulsa que a indiferença face a eles ainda mais me causa que considero que a legislação sobre o enriquecimento ilícito é uma fuga em frente destinada a calar a demagogia, ocultando tudo o que já se pode fazer e não se faz. Por outro lado, a ideia de que a violação de direitos, como aquela a que leva a inversão do ónus da prova, torna a investigação e as condenações mais fáceis irá a seu tempo recair sobre os cidadãos comuns e poupar os políticos. Porque, em todos os casos que conheço de enriquecimento suspeito, conheço eu e conhece toda a gente, a punição só não veio ou por incompetência, cumplicidade ou falta de vontade, ou, numa hipótese mais benigna, pela falta de meios. Nunca por falta de lei. Só é eficaz uma mudança de atitude, um maior rigor e melhor trabalho dos profissionais, um maior apoio das autoridades, e, acima de tudo, uma opinião pública que substitua os guinchos demagógicos por uma completa intolerância para com a corrupção.

(Versão do Público de 1 de Outubro de 2011.) 

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© José Pacheco Pereira
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