ABRUPTO

9.10.11


IDEIAS FEITAS SOBRE A VIOLÊNCIA SOCIAL


(Este artigo foi publicado no Público de 8 de Outubro como se se tratasse de texto corrido, sem separar as notas, pelo que ficou incompreensível. Esta é a versão original que enviei para o jornal.)

Governantes a falar em público sobre tumultos hipotéticos é uma asneira de compêndio. O efeito conhecido é o exacto contrário; funciona como irritante social e provocação, ou seja, favorece o clima para aquilo que pretende evitar. 

Relatórios da polícia ou de serviços de informação passados para a imprensa, com a provável intenção de justificar o alarmismo de declarações de governantes, ou de servir de mecanismo de dissuasão, têm o mesmo efeito irritante e de provocação, ou seja, favorecem o clima que pretendem evitar. Os relatórios deste tipo, que podem e devem ser feitos, porque é para isso que existem os serviços de "inteligência" das forças de segurança, são para manter confidenciais. Ponto final. 

Não se deve confundir agitação social com violência social, e, embora possam comunicar entre si, não são a mesma coisa. Parece que ninguém tem dúvidas sobre o agravamento do clima de conflitualidade social e sobre a provável ocorrência de incidentes com ele associado. Piquetes de greve, serviços mínimos, tentativas de "furar" a greve, utilização de serviços privados de segurança pelas empresas, etc., são conhecidas fontes de incidentes em momentos de greve. Mas não estou certo que não possa haver, em certos meios laborais e empresas mais radicalizadas, onde haja grupos de trabalhadores mais desesperados, tentativas de ir mais longe, por exemplo, bloquear as vias públicas com camiões e outros meios pesados. Tal já aconteceu várias vezes nos últimos anos em Portugal, desde o bloqueio da ponte (que curiosamente ninguém lembra quando se fala dos "brandos costumes sociais dos portugueses") a lutas dos camionistas. A escalada nesse sentido é possível e não estou certo que mesmo a pacífica CGTP não se sinta tentada a fechar os olhos a essa escalada. A CGTP não tem mostrado caminhar no sentido de radicalizar os movimentos sociais, mas não pode desligar-se do seu rank and file, principalmente em áreas muito sensíveis do seu poder, como os transportes.

As manifestações "orgânicas" como as da CGTP são cuidadosamente controladas quer pelo serviço de ordem da CGTP, quer pela colaboração próxima da central com as autoridades policiais. Têm sido até agora "manifestações" no sentido próprio, feitas para "manifestar" a sua força própria e mostrar, pela mobilização, a temperatura do protesto social. Pode haver incidentes, mas não haverá por regra violência generalizada, pelo que os governantes que se "congratulam" por as manifestações como a de 1 de Outubro serem "pacíficas" estão a chover no molhado. 

A violência social e a ocorrência de actos ilegais são muito mais prováveis em manifestações "inorgânicas", como as dos "indignados", "acampados", "geração à rasca", etc., que hoje têm uma importante componente mimética com idênticos movimentos em Espanha, EUA, etc. São realizadas por grupos muito mais radicalizados, alguns impropriamente chamados de "anarquistas", mas nos quais há nostálgicos da "acção directa", e alguns panfletários que defendem a violência (os tumultos de Londres foram elogiados em blogues), o que também não significa que passem das palavras à prática. O facto de a primeira manifestação da "geração à rasca" ter sido massiva e não ter tido incidentes não serve de exemplo para movimentos deste tipo. Essa manifestação foi uma grande manifestação contra Sócrates, que uniu da extrema-direita à extrema-esquerda, que foi convocada por organizações como a JSD e que foi tratada pela comunicação social com uma simpatia mais que militante. Nesses dias quem não mostrasse simpatia pela "geração à rasca" não era bom português. 

É interessante observar que, tendo entre os seus proponentes muitos dos mesmos que organizaram a manifestação da "geração à rasca", a manifestação de 15 de Outubro está longe de ser tratada na comunicação social da mesma maneira. Também já não há a válvula de escape da mudança política e Sócrates está a estudar filosofia. Por isso, a manifestação será outra coisa. 

Não se deve confundir paz social e aquiescência pacífica com medidas gravosas no plano social (despedimentos, impostos, aumentos de transportes, etc.), com a aceitação e interiorização da racionalidade dessas medidas. Uma das frases que mais me preocupam é a cada vez mais repetida frase que "os portugueses compreenderam que têm de fazer sacrifícios e que não há outro caminho para sair da crise". É falso e perigoso acreditar, e é um caso típico de wishful thinking, que quem fica desempregado, quem perde muito do seu salário, quem fica sem casa ou carro para entregar ao banco, quem vê a sua pequena empresa a falir, quem deixou de ter dinheiro para pagar os estudos de um filho, quem era remediado e fica pobre, quem já era pobre e fica mais pobre, "compreende" o que lhe está acontecer. Esta ilusão, diria um marxista, é típica de um discurso da "classe dominante", aquela que está a falar sobre os "sacrifícios" dos outros e quer que os "outros" os aceitem naturalmente. É uma frase típica do discurso do poder, mas não serve para analisar os processos de conflitualidade social. 

Nunca na História contemporânea as classes sociais mais "sacrificadas" aceitaram a racionalidade dos "sacrifícios" a que são sujeitas, porque exactamente em sociedades com grandes diferenças sociais "nunca toca a todos da mesma maneira". "Nós" sabemos e "eles" sabem. Por isso, não há volta a dar: sentimentos de raiva, frustração, revolta estão a crescer e manifestam-se por todo o lado. Na Internet, nos comentários, na correspondência para os jornais, no sucesso de campanhas populistas e demagógicas como as do Correio da Manhã, nos "fora" da rádio e da televisão. Quando se analisam as possíveis excepções encontramos sempre ou factores ideológicos, como o nacionalismo, ou religiosos, como o proselitismo ou a defesa de uma identidade religiosa, que funcionam como cimento social, mas mesmo assim imperfeito. 

Uma das maiores derrotas históricas do movimento socialista ocorreu no início da I Guerra Mundial, quando o pacifismo internacionalista "sem pátria", comum aos movimentos socialistas e anarquistas, soçobrou ao entusiasmo nacionalista dos soldados que marchavam alegremente sobre Paris ou Berlim. Outro exemplo que costuma ser referido é o "sangue, suor e lágrimas" da II Guerra Mundial em Inglaterra, mas mesmo esse exemplo é muito mitificado e oblitera muitos dados problemáticos da História, como seja o período em que os comunistas ingleses fomentavam greves contra a "guerra imperialista". O que nunca encontramos na história dos últimos duzentos anos foi "consenso social" nos "sacrifícios" como hoje piedosamente se acredita que exista. 

Quanto mais se insiste na inexistência de alternativas, por muito verdadeiro que isso seja, mais se alimenta um sentimento de revolta social contraditório nos efeitos, mas comum na génese. Por um lado, adensa-se a apatia e o fatalismo que mata a acção colectiva mas pode excitar a acção violenta individual. Por outro, pode gerar um sentimento de revolta generalizado contra tudo e contra todos que procurará qualquer escape. Quer num caso quer noutro, por apatia ou revolta, os factores de conflitualidade agravam-se até porque nem toda a violência social é colectiva, ou de massas, pode ser de pequenos grupos ou de indivíduos isolados em actos de desespero individual. 

O sector dos trabalhadores do Estado, seja na administração central, seja nas empresas públicas, é um dos mais atingidos pelos "sacrifícios" da crise. Não digo que seja o mais afectado, porque até agora a garantia do emprego sobrepunha-se como regalia valiosa em tempo de desemprego maciço. Mas se começar a haver despedimentos em massa na função pública e nas empresas públicas, atingindo pessoas que já foram alvo de muitas medidas prévias de austeridade, existe um potencial de grave disrupção social. Convém lembrar que o movimento social mais eficaz nos últimos anos em Portugal foi o dos professores, e que o processo de empobrecimento real e simbólico de sectores da chamada "classe média" tem muito maior potencial de conflito do que o vindo dos "pobres" propriamente ditos.

(Continua, sobre a corrupção, os "ricos", os grupos violentos, etc.)

*

Estou de acordo consigo quando defende que é «falso e perigoso» acreditar que os portugueses compreenderam que têm de fazer sacrifícios e que não há outro caminho para sair da crise. Muitas pessoas, no entanto, acreditam que isso é verdade. E porquê? Julgo que isso é porque a maior parte das pessoas que publicam artigos em jornais e fazem comentários nas televisões acreditam nisso, pois em geral essas pessoas fazem parte da classe dominante. E isso leva a uma sensação de consenso social que, de facto não existe.

(José Carlos Santos )

*
Horas antes de alguns jogos de futebol, é a própria PSP quem se encarrega de divulgar, aos-sete-ventos, que vai ser um "jogo de alto risco", e enumerar os dispositivos repressivos que tem em preparação - o que, evidentemente, é 'música celestial' para os ouvidos dos arruaceiros do costume, que apenas anseiam por um bom confronto.

O resto do 'filme', de tantas vezes que o vimos, é por demais conhecido...

(C. Medina Ribeiro)


(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]