O
martelo-pilão abateu-se outra vez sobre os portugueses sob a forma
habitual, impostos, aumentos de preços e reduções de salários. De cada
vez que se espera que seja a última, há sempre mais uma. Por isso, a
coisa mais fácil de vaticinar é que esta não será a última, e se calhar
nem será a mais gravosa. Não só muitas marteladas estarão escondidas no
que ainda se desconhece no Orçamento, como se está a caminhar para um
ciclo de muito difícil saída. O que de mais gravoso o primeiro-ministro
escondeu na sua declaração, mas que o seu ministro das Finanças está a
dizer sob reserva aos partidos, é que uma parte do descalabro orçamental
deste ano e do previsível para o ano já não vem dos "buracos", mas da
quebra de receitas do Estado, que torna o aumento dos impostos em grande
parte ineficaz. Ou seja, estamos a entrar num ciclo vicioso que se pode
aguentar um ano ou dois e, em seguida, ficamos "gregos".
Aguentar
um ano ou dois é a chave da razão porque apoio estas medidas, porque
sei que, se Portugal não cumprir os objectivos do défice acordados com a
troika, não tem qualquer margem de manobra para qualquer
negociação futura. Vai ficar de rastos e vai ter que recomeçar a partir
de muito atrás, mas as alternativas que existem e de que falarei a
seguir - sim, porque há alternativas - colocam-nos numa situação muito
pior. Há alternativas, o que são é más, muito más.
Por isso,
poderíamos desejar um outro Governo mais capaz e imaginativo, poderíamos
desejar acima de tudo um Governo mais experiente e melhor conhecedor da
realidade nacional, que se tivesse preparado estudando o nosso país e
não atirando soluções de catálogo para agradar aos blogues liberais, que
não precisasse de estar a aprender ao mesmo tempo que, em absoluto
estado de necessidade, precisa do martelo-pilão em vez de um martelo
mais afinado, poderíamos desejar tudo diferente, mas é este que temos e
se, no final, chegar a 2012 e 2013 cumprindo os objectivos do défice,
fará bem. Esta vontade existe no Governo e isso é muito positivo. A
consciência da emergência também existe, e isso também é bom. É aqui, e
não nas soluções, que se distingue de Sócrates.
Porém, os seus
propagandistas podiam poupar-nos as ilusões e a demagogia ideológica:
daqui não resultará qualquer estado mais virtuoso na sua magreza, nem
nenhum país mais competitivo, nem um Portugal melhor. Sairá um país mais
pobre, exausto, mais dependente, menos culto, menos qualificado, com
maiores diferenças sociais, mais zangado e mais violento, e, muito
provavelmente, com menos liberdades. E quase de certeza sairá com um
Estado mais poderoso - exactamente o contrário do que os propagandistas
dizem - e uma sociedade civil mais fraca. Quem, a partir dessa situação,
quiser governar Portugal, tem que começar daqui e não da Utopia.
Dito
isto, a única margem de manobra previsível será ter cumprido a nossa
parte de um acordo que nem é bom, nem virtuoso, mas que nos dá um espaço
de sobrevivência e, se for cumprido, um espaço de negociação. Esse
espaço não depende só de Portugal, mas aí é que se vai ver o que o
Governo pensa e propõe sem ser em estado de absoluta necessidade. Só de
necessidade.
Voltemos às alternativas. Só a pobreza do nosso
debate político pode explicar que se possa ouvir um dia inteiro, num
canal noticioso, pessoas distintas sobre pessoas distintas a dizerem que
não há alternativa, e alguns populares nos fora a dizer que há, é
prender os políticos, não pagar aos bancos, confiscar o dinheiro aos
ricos e "renegociar a dívida". São as soluções que o BE e o PCP propõem e
que são muito mais populares do que se pensa, em particular nas vítimas
do martelo-pilão. Insisto, de novo, no que escrevi há uma semana, que a
ideia mirífica que as pessoas "interiorizaram" de que "têm que passar
por sacrifícios" é muito bonita na retórica da classe dirigente, mas não
tem nenhum fundamento social.
Que alternativas existem? Algumas
são do domínio dos milagres, mas há muita boa gente que acredita em
milagres. Por exemplo, pode sempre aparecer petróleo na costa e o país
ficar uma pequena Noruega, sem noruegueses. Bom, muita gente acredita em
política em coisas deste género, e, como não é impossível, pode sempre
acontecer.
Algumas são ad terrorem, mas a situação que se
vive é propícia a muitos terrores e estas são, infelizmente, mais
prováveis. A Grécia e as tensões gregas podem servir para comparação.
Por exemplo, vamos admitir que o Governo falha o défice, acabou o
dinheiro para pagar salários, há despedimentos por todo o lado, o
sistema político bloqueia e há tumultos diários. A Europa desistiu de
manter no euro Portugal e a Grécia, porque tem que se voltar para
Espanha e Itália, e nos dá como perdidos. Não é impossível que tal
aconteça. Haverá quem pense numa alternativa antidemocrática, um golpe
de estado militar, por exemplo, para "pôr os sindicatos na ordem",
prender os arruaceiros antipatriotas e prometer pôr as finanças em ordem
e depois "voltar à democracia". A Europa ostracizará Portugal, mas
Angola não, e manu militari os défices são cumpridos e os nossos
"patriotas" golpistas organizam um "partido da ordem" e ganham eleições
mais ou menos livres. A Europa, que aceita um poder líbio
"revolucionário" com tanta legitimidade como o de Khadafi, que, aliás,
também aceitava, lá nos permitiria entrar de novo, agora com as finanças
limpas e um Estado magro. Impossível? Perguntem aos gregos se eles
acham isso impossível na Grécia.
Depois há a história da
"renegociação da dívida". Vamos admitir que um Governo com essa
plataforma ganha eleições. No dia seguinte, esse Governo propõe aos
nossos credores negociar a dívida e recebe um rotundo não. Portugal,
nessa altura, já terá os ratings da mais funda lixeira, ninguém
nos empresta um soldo, e alguns bancos europeus estarão na falência por
"exposição" à dívida portuguesa. A Grécia terá falido entretanto e
ninguém na Europa tem qualquer margem de manobra para ir apoiar esses
incumpridores radicais dos portugueses. Se pensam que a atitude actual
da Europa face à Grécia será a mesma face a uma declaração unilateral de
incumprimento, desenganem-se. Os gregos ainda prosseguem o seu caminho
no euro porque o Governo desespera-se a tentar cumprir o que lhe pedem.
Um país que diga "acabou, enquanto não renegociarem a dívida, não há
nada para ninguém", terá um não rotundo.
Um mês depois, não
haverá dinheiro para pagar salários e aos fornecedores do Estado, todo o
capital que poderia fugir fugiu, e importações básicas, como rações
para o gado, petróleo, sobressalentes, matérias-primas para as poucas
fábricas ainda em actividade, cessarão. Começará o racionamento, a
começar pela gasolina, e o Governo legislará sobre actividades
prioritárias. A maioria dos voos da TAP será cancelada, com excepção de
alguns voos "estratégicos". O cenário habitual dos países do "socialismo
real", bichas, lojas vazias, mercado negro, tornar-se-á quotidiano.
O
Governo da "renegociação da dívida" apelará à solidariedade
internacional em nome de qualquer coisa que soará à "revolução
portuguesa". Talvez Chávez mande um barco de petróleo, com muitas
bandeiras e grande aparato. Mas a atenção do Governo será para outra
coisa: "ir buscar dinheiro onde ele existe". Os bancos serão
nacionalizados, assim como os "grandes grupos económicos", e a
penalização para os "crimes económicos", como a evasão fiscal e a fuga
de capitais, será pesada. Um novo tipo de criminosos será preso em
directo e aparecerá nos noticiários da sempre amiga do poder RTP. Como o
nome para as coisas acabará sempre por vir ao de cima, teremos um
Governo "socialista e de esquerda" que lutará pela "justiça económica",
contra a banca internacional e o imperialismo dos "mercados". Acho que
sabemos muito bem como isso começa e como isso acaba, mas que é uma
alternativa, é. É, é muito má.
Pode-se argumentar que a pobreza
dos portugueses, num caso ou noutro, é inevitável e semelhante. Admito
que sim, mas as liberdades não serão as mesmas. E com uma alternativa
podemos ter violência nas ruas, com a outra podemos ter guerra civil. O
Diabo escolheria a "renegociação da dívida" porque os resultados são
mais certos e imediatos. E o Diabo escolhe sempre o lugar onde não há
nenhuma esperança possível e que se chama Inferno. Tenhamos a esperança
que ainda só estamos num Purgatório muito duro. Até um dia.
(Versão do Público de 15 de Outubro de 2011.)
*
Enquanto na maior parte
dos outros países as manifestações dos "indignados" tiveram lugar
sobretudo em locais simbólicos relacionados com o sistema financeiro
(bolsas, bancos, etc.), em Portugal a manifestação em Lisboa teve como
palco privilegiado e exclusivo o símbolo da democracia.
Nos outros países as
manifestações foram contra o "sistema". Em Portugal foram contra o
"regime". Não sei se existe uma consciência clara deste fenómeno, nem se
ele mereceu a atenção devida dos jornalistas e comentadores, mas algo
parece claro: num país onde tudo depende do Estado e em que a crise é em
grande parte consequência da incompetência de diversos governos (desde a
gestão da integração na UE, à entrada no Euro ou à ausência de controlo
da despesa), a responsabilidade da crise será assacada ao regime.
Essa responsabilização
poderá ser porventura justa, mas a tragédia é que as nossas liberdades
estão intrinsecamente ligadas ao regime. Quando este cair, as nossas
liberdades também cairão. Talvez já tenha até caído e já só
funciona neste momento por inércia, até que uma força de sinal contrário
torne evidente a ausência de forças vivas suficientes para defender o
regime, apesar de tudo, em nome das nossas liberdades.
Não seria a primeira vez que algo similar acontece em Portugal. É aliás a nossa história recorrente.
(João Lopes)
*
A observação do comentador João Lopes é interessante e gostava de
salientar uma outra particularidade curiosa nas manifestações a que
temos assistido, a que julgo nenhum comentador tem prestado a devida
atenção. Enquanto as manifestações de "indignados" em Portugal e na
Europa têm uma forte tendência anti-governo, aquilo que se está a passar
nos Estados Unidos, com o movimento Occupy Wall Street e seus
sucedâneos, é fundamentalmente diferente. Do movimento OWS têm saído
vozes de exigência apelando à actuação do Presidente Obama, no sentido
de forçar a transparência governamental, reduzir a influência não
escrutinada e o lobbying dos agentes financeiros a regulação do sector
financeiro. Ou seja, é um movimento em favor da acção do sistema de
governo. O que observamos em Portugal são manifestações de retórica
profundamente diferente, anti-governo e anti-regime, que se
auto-proclamam como uma alternativa à própria Democracia. Compreende-se assim a pouca ênfase que a Esquerda tem dedicado ao
movimento OWS, reduzido a nota de rodapé e sucedâneo do outro lado do
Atlântico - de onde, como se sabe (ou sabem eles) nunca pode vir nada de
bom. E para ver as diferenças entre o que se passa, lá e cá, basta
olhar para as pessoas que estão na rua e ouvir as coisas que dizem.
Efectivamente, um oceano nos separa. -- blog: bA [a barriga de um arquitecto]
*
Li com muito interesse o seu post "HÁ ALTERNATIVAS? HÁ, O QUE SÃO É PIORES".
Apesar de não concordar com muito do que diz, reconheço que é uma peça
honesta, franca e que tenta um realismo que não está muito em voga. Por
essa razão, penso que vale a pena partilhar consigo as minhas reflexões /
dúvidas. Em primeiro lugar,debruço-me sobre a sua descrição do
futuro próximo do pais: concordo que esta austeridade vai fazer de nós
um pais mais fraco, menos livre e mais pobre. Concordo que o país não
vai resolver os problemas estruturais desta maneira. Concordo
especialmente consigo que a pobreza não tem qualquer virtude redentora
(uma ideia salazarista que me repugna). O que eu não concordo consigo é
com o ponto crucial da sua argumentação: a ideia de que algures no futuro a nossa "credibilidade" vai de alguma forma renascer e que os mercados vão acreditar em nós. Penso
que isso é falso: os "mercados" (o que quer que sejam!) funcionam com
base no medo extremo e na euforia extrema aliado a um extremo seguidismo
(o espírito de "manada", muito bem documentado em tratados de
"behavioural finance").
Assim, quando o governo português anuncia medidas de austeridade extraordinárias,os "mercados" interpretam tais medidas como a confirmação dos seus piores medose
reagem em conformidade. Uma boa demonstração deste fenómeno é o que
aconteceu quando a Moody's desceu o rating português na sequência do
primeiro corte de subsidio de Natal por parte de Passos Coelho. A
Moody's limitou-se a interpretar (de forma correcta) os sinais dados por
Passos Coelho. Passos Coelho foi honesto e franco mas a sua franqueza
e a sua honestidade (ingenuidade?) custou ao pais umas boas centenas de
milhões de euros em juros acrescidos. Valeu a pena?
Esta é a principal razão pela qual eu penso que a austeridade não
nos vai levar a lado nenhum... ou melhor de acordo com a melhor teoria
económica keynesiana vai haver um momento em que os activos e o trabalho
vão ser tão baratos que os investidores (portugueses ou estrangeiros)
vão começar a investir em Portugal.
Mas isto não tem nada a ver com confiança: tem a ver com recessáo e
pobreza impostas à força da lei. Na Irlanda: após 4 anos de austeridade e
uma redução no GDP de quase 20% e(e um desemprego de 18%) a "confiança"
renasceu. Bem, é fácil ter confiança num pais com baixos custos de
produção e com desemprego alto: um pais excelente para investidores em
busca de saldos e pechinchas... Inevitavelmente
vai acontecer o mesmo na Grécia. e em Portugal também... mas a que
custo? Quem é que quer ser rico quando vive no meio da miséria? Somos um
pais europeu, solidário e civilizado ou somos uma qualquer Guatemala ou
El Salvador?
Isto leva-nos à reflexão que faz sobre as qualidades da equipa
governamental. Diz o JPP que desejava que a equipa fosse mais experiente
e mais conhecedora e politicamente mais apta. Concordo inteiramente.
Com a diferença que essa qualidade politica, que para sí é secundária
neste contexto (ao contrário das qualidades técnicas e das "boas
intenções"), é para mim essencial. As necessidades de liderança do
contexto que eu expus em cima, saber sentir o pulso do "inimigo", saber
agir de forma adequada na face do perigo têm um nome muito antigo e
muito nobre: politica.
Ora o que nós temos visto neste governo é falta de capacidade
politica, falta de coerência na politicas apresentadas e falta de
pensamento estratégico. O caso da TSU, por exemplo revela não só
desnorte estratégico como também uma inesperada falta de preparação
técnica. Isto num governo presidido por alguém que em Janeiro dizia
estar "preparado para governar com o FMI"... Será que PPC sabia do que
estava a falar? Agora diga-me acha que estas práticas contribuem para
aumentar a credibilidade de quem quer que seja?
Na altura em que Portugal aceitou a ajuda do FMI eu fui a favor e
achei que era benéfico: achei que a intervenção da troika seria um motor
para a reformas estruturais de que necessitamos há décadas (e o memo é
um excelente roadmap para isso!). Hoje, passados 5 meses, penso de outra
maneira. A entrada do FMI em Portugal marcou-nos (da mesma forma que se
marca gado): os mercados passaram a olhar para nós como transgressores,
criminosos quase. Para eles, no fundo, Portugal, independentemente das
suas especificidades, não era muito diferente da Grécia. No fundo,
Portugal não passa de mais um PIIG na fila de espera para o abate. Mais
uma vez, o seguidismo da manada (movida por sentimentos puramente
primários e irracionais) faz-se sentir.
José Socrates, do fundo das suas qualidades (muito poucas,
reconheço), dos seus defeitos (imensos!) e das suas culpas (também
imensas!) percebeu esta dinâmica e tentou contraria-la. Porquê? Porque
tinha uma qualidade que Passos Coelho não possui. É politico. E, mesmo
no momento mais negro, nunca deixou de pensar como tal.
Agora voltando ao principio: há alternativas? Se calhar não há. Este
governo tem legitimidade democrática e ao mesmo tempo não tem
imaginação nem vontade para fazer diferente (e a troika e José Socrates são sempre excelentes desculpas...).
Por isso as novidades vêm lá de fora. Começam a aparecer sinais de que a via da austeridade talvez não seja a melhor (aqui ou aqui).
Por outro lado, quando a Grécia finalmente "estoirar" a Europa vai
despertar e procurar formas construtivas de sair da crise (porque elas
existem!). Eu não digo que não tenham de haver reformas estruturais,
elas são indispensáveis! Estas têm é de ser feitas de forma que, no
final, não tenhamos a reforma estrutural dum cemitério. Rui Silva PS
.By the way, não sei se reparou que eu não tenho em grande conta a
chamada racionalidade dos mercados... às vezes são racionais outras
vezes não são. Em situações limite, como a situação presente, parece-me
óbvio que os mercados não são racionais. Assim, porque razão é que os
havemos de levar a sério e trabalhar (sacrificar-nos) para aumentar a
nossa credibilidade junto deles? Reconheço que Portugal, no passado, não
foi exemplar, mas será que merece isto?