ABRUPTO

24.10.11


A BIZARRA HISTÓRIA DA INTERVENÇÃO NA LÍBIA


Por muito esforço que faça para compreender o que justificou a política da UE e dos EUA, em relação à Líbia não a consigo entender. A não ser pela universal explicação que os marxistas-leninistas reciclados e os altermundialistas costumam dar - o "imperialismo" queria o controlo do petróleo líbio, o mais barato de obter pela força nestes dias da crise - não se vê o que explica a guerra contra Khadafi. Parecendo-me por regra esta "explicação" pouco explicativa, chamemos-lhe assim, pelo menos tem a vantagem de fornecer uma interpretação dos eventos que, à míngua de qualquer outra, ganha algum peso.


O que aconteceu no último ano no mundo muçulmano, os eventos na Tunísia, Egipto, Bahrein, Iémen e Síria, só para citar os casos mais relevantes, está longe de ser esclarecido e muito menos de ser conhecido. Com a grande apetência para a ilusão exótica e a vontade de wishful thinking que têm os media ocidentais, divulgou-se uma interpretação dos eventos feita à medida mais das esperanças ocidentais do que das realidades locais. A "revolução democrática" personificada na Praça Tahrir foi saudada como sinal de que a "rua árabe", mais o Facebook, mais meia dúzia de blogues (alguns que hoje se sabe serem falsos como A Rapariga Lésbica de Damasco feita por um homem barbudo que vive na Escócia), tinham varrido as tentações fundamentalistas da Al-Qaeda e mostrado um amor à democracia onde menos se esperava que ele existisse. 

Subitamente, velhos amigos dos EUA, do Reino Unido e da França, clientes importantes da indústria de armamento americana e europeia, saudados como "moderados", como Mubarak, ou reciclados do terrorismo, que passaram a fornecer informações muito úteis aos serviços secretos, como Khadafi, foram transformados em ditadores sanguinários, a abater pelas massas democráticas com a preciosa ajuda dos mesmos serviços que os consideravam até então um asset valioso. De facto, alguns cabiam plenamente na categoria de ditadores sanguinários e outros bastante menos, mas a pertença a esta categoria nunca foi especial motivo para que os mesmos países que organizaram a expedição líbia com eles não tivessem próximas relações e bons negócios. 


Na verdade, só por amálgama se pode falar de uma "revolução árabe" idêntica e comum em todos estes países, descontando-se o papel mimético que este tipo de eventos produz. Aliás este mesmo mimetismo levou vários dos "indignados" europeus e americanos a convencer-se que em Lisboa, Madrid, Londres ou Nova Iorque também havia uma Praça Tahrir à sua espera. Porém cada país é uma história diferente, interlocutores diferentes, motivos diferentes e resultados diferentes e isso separa os eventos na Tunísia, no Egipto e na Síria, dos eventos no Bahrein, Iémen e na Líbia, assim como dos sítios onde o movimento não teve expressão significativa, como Marrocos, Argélia, Jordânia, Arábia Saudita ou, no mundo persa, no Irão. 

Os resultados do que aconteceu ainda estão a desenvolver-se porque o processo social e político está longe de terminar ou sequer de revelar as suas plenas consequências. No Egipto, os militares continuam no poder, com um reforço muito significativo do Islão radical nas ruas. Os cristãos coptas têm provado da receita democrática. Na Tunísia, existe um interim que permanece assente num regime militar. Em breve haverá eleições, mas o desinteresse que a imprensa ocidental mostra agora pelas mesmas "revoluções" que saudou fornece poucas informações sobre o que se passa. Em Marrocos houve reformas, mas o poder do rei permanece intacto e a islamização do regime tem-se acentuado. 

Em nenhum caso, a liberdade religiosa, ou a condição feminina, os dois grandes obstáculos à democracia nos países muçulmanos, está hoje melhor do que estava antes, bem pelo contrário. Dos motivos que se podem facilmente aceitar das "revoltas", a condição social dos mais pobres, o desemprego e a corrupção, apenas no caso da corrupção houve alguns avanços, como o levar a tribunal dos antigos dirigentes. Porém é difícil separar essas perseguições da elite de poder corrupta do revanchismo político dos membros da mesma elite que passaram para o lado da "revolução". 

Voltemos à Líbia e, por comparação da hipocrisia ocidental, voltemos também à Síria. Na Líbia existia uma ditadura particularmente feroz e com muitos anos. Khadafi era hoje um dos raros sobreviventes de um nacionalismo socializante e laico que teve um papel importante no mundo árabe desde a década de cinquenta, e que teve como principal figura Nasser, e o pai do actual ditador sírio, Hafez Al-Assad, mas de que Saddam Hussein fez parte. Era uma corrente popular nas forças armadas dos países árabes, humilhadas pelas derrotas face a Israel e pelas pressões imperiais ocidentais. Estes militares conduziram golpes militares, afastaram as "monarquias feudais", ligaram-se estrategicamente à URSS e foram, a seu tempo, muito populares nos seus países. Com um poder assente em ideias ocidentais, o nacionalismo e o socialismo, estavam muito abertos a uma maior laicização da sociedade e por isso eram combatidos ferozmente pelas autoridades religiosas e por grupos fundamentalistas, de que o exemplo primeiro era a Irmandade Muçulmana egípcia. Nasser, Assad e Mubarak respondiam com idêntica ferocidade e violência. 

Khadafi, no meio das suas excentricidades, vinha deste tempo e a sua solução para o mundo, o célebre Livro Verde, levou a Trípoli muitos intelectuais ocidentais, incluindo portugueses da esquerda, socialistas e alguns militares de Abril, que lá foram falar das virtudes do socialismo líbio. Khadafi agradeceu apoiando vários grupos terroristas, incluindo as FP 25 de Abril, e apoiando financeiramente órgãos de comunicação social portugueses da esquerda. Mas hoje já ninguém se lembra deste Khadafi, que foi o do atentado de Lockerbie, a favor do Khadafi dos negócios. A memória das relações Sócrates-Khadafi ainda está bem presente, mas os negócios líbios vão muito para além do anterior Governo.


Quando a "revolução árabe" chegou à Líbia foi tratada pelo mesmo princípio de amálgama com o caso egípcio e tunisino, mas quem conhecia o que se passava sabia que havia uma forte componente tribal no conflito, que não era novo na Líbia e tinha já originado a divisão pelos italianos do país em duas colónias, a Cirenaica e a Tripolitânia. Khadafi respondeu à ameaça ao seu poder como sempre fez, com toda a violência possível. A diferença no caso líbio é que quando se percebeu que Khadafi iria derrotar militarmente os seus adversários, países como a França, e em menor grau o Reino Unido e com alguma relutância os EUA começaram a desencadear um clamor internacional para defender os "civis" líbios e ameaçar fazer uma intervenção militar. Os franceses foram particularmente activos.


Após um processo complicado de negociações foi aprovada na ONU a Resolução 1973, que abriu caminho à intervenção militar naquilo que era uma guerra civil na Líbia. Uma mera leitura dessa resolução revela que, tomada à letra, ela tinha muito mais sentido para países como a Síria, cuja matança de civis é muito mais significativa, do que na Líbia, onde havia uma revolta armada. Mas na Síria, Bashar Al-Assad pode matar os civis que quiser sem ter os caças da OTAN a sobrevoar Damasco.
 


Se voltarmos à resolução é fácil de ver que ela está longe de legitimar o tipo de intervenção que culminou no assassinato de Khadafi. Ela fala da "interdição do espaço aéreo", na ajuda humanitária, num embargo de armas ao regime líbio e, embora tenha uma forma ambígua que permitia "usar todos os meios necessários para proteger os civis", estava longe de legitimar o que aconteceu. O que aconteceu, à completa revelia da resolução, foi uma intervenção militar da OTAN ao lado dos revoltosos líbios, actuando como parte integrante político e militar de uma das partes numa guerra civil. Os bombardeamentos a Trípoli tinham como objectivo instalações militares e civis de Khadafi, o governante reconhecido por eles próprios como chefe de Estado de um país soberano, a que se somou a participação total em operações militares concertadas, com a presença de "consultores" e instrutores de forças especiais no terreno, fornecimento de armas aos revoltosos e perseguição directa a Khadafi e à sua família. Durante este período os revoltosos competiram com Khadafi em todo o tipo de abusos de direitos humanos, fuzilando prisioneiros, torturando e matando opositores e impondo às populações civis, que suspeitavam de ser simpatizantes de Khadafi, todo o tipo de violências. A imprensa ocidental permaneceu regra geral silenciosa sobre estes actos, e a opinião pública ocidental e árabe indiferente ao que se passava na Líbia. Deste ponto de vista, Khadafi foi bem escolhido, porque se fosse Bashir Al-Assad outra história bem diferente estaria ser escrita e é também por isso que ele pode continuar a matar os seus civis à vontade. E não tem petróleo. 

Quando Khadafi foi, por fim, assassinado, numa ataque militar que começou com aviões da OTAN e terminou com uma execução sumária, não foi o "povo" líbio que ganhou a guerra. Foram Sarkozy, Cameron e Obama e é por isso que toda esta história é muito bizarra. Porquê? E para quê? 

(Versão do Público de 22 de Outubro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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