ABRUPTO

4.9.11


O ARTIGO DO REGRESSO


Costumo escrever, em princípio de Setembro, aquilo que se pode chamar o artigo de regresso. Não que eu regresse de lado nenhum, nem que milhões de portugueses tenham ido a lado nenhum, mas a intelligentsia nacional, a classe média e uma parte significativa daquilo que os marxistas chamam pequena burguesia efectivamente regressa de algum lugar, ou seja do Algarve. E, eu que não regresso, tomo as dores do seu regresso, verdade seja pensando mais em quem cá está do que em quem foi, naquilo que é a grande transumância algarvia. Porque a grande divisão continua aí, entre os que vão e os que não vão, e não atravessa pelo meio dos que vão. Esses têm férias, logo têm emprego e têm dinheiro para a deslocação. Têm, é verdade, cada vez menos, mas ainda têm. Não são pobres, estão a empobrecer.

Os artigos de regresso, já de alguns anos para cá, são aquilo que os ingleses chamam gloomy, tristes e sombrios, porque o que espera os que vêm é trabalho - melhor: "ter que ir para o trabalho", o que é suficientemente sinistro -, cidades pouco amáveis, trânsito, rotinas, horários, chuva, crianças e escolas. Para sociedades em que domina o princípio do prazer, isto basta para deprimir muita gente. Mas agora falta o resto e o resto é, para usar um eufemismo, mau e, para ser mais verdadeiro, péssimo.

O país está como está, insolvente, sem meios próprios para viver, o que significa que viveu e vive acima dos seus meios. O "país", claro, é uma abstracção. São as "pessoas", outra abstracção, mas já menos abstracta. O que significa viver acima das suas posses? Significa haver emprego garantido pelo Estado a mais, educação e saúde quase de graça, milhares de casas compradas porque não havia mercado de aluguer, mas endividando as famílias para a vida toda, centenas de milhares de plasmas, sofás, câmaras de vídeo, automóveis, férias, compradas em "crédito para o consumo" ou com cartões de crédito, garantias de reforma e "direitos" muito acima da capacidade dos trabalhadores activos de as pagarem, professores a mais, polícias a mais, médicos a mais, trabalhadores municipais a mais, militares a mais, mesmo quando sabemos que, em todas estas funções, estão a menos. Muitas camionetas, autocarros, comboios, aviões a mais, mesmo quando, insisto, são a menos. A mais para o dinheiro que temos, a menos para as necessidades. Muitas autarquias a mais (o grande silêncio do poder...) , muitas empresas municipalizadas a mais, muitos órgãos de comunicação social do Estado a mais, muitos desperdícios, prebendas, regalias a mais, bem escondidas de todos e conhecidas só dos que as utilizam. Ou seja, uma mistura de Estado terceiro-mundista, entre a providência e a corrupção, mas demasiado intrincado no nosso atraso e subdesenvolvimento para poder ser cortado a grande golpes de espada, sem fazer sangrar também o país, as pessoas, e sem correr o risco de o incapacitar para qualquer coisa de útil.

Vivemos de facto acima das nossas posses. Deveríamos poupar uma vida inteira para comprar casa só no fim. Ir ao médico só muito doentes. Ir ao hospital só de maca. Andar dois ou três quilómetros para apanhar uma camioneta. Ir ao restaurante uma ou duas vezes ao ano e só nas cidades. Emigrar em massa para qualquer "batimento" antes na França, agora em Angola. Cada dez famílias, uma ter um carro utilitário, que de vez em quando leva a família toda numa grande excursão a Fátima. Fazer dois anos de serviço militar obrigatório, escola profissional dos pobres, pré, comida e alojamento de graça e relações sociais úteis para arranjar trabalho. Como os nossos avós faziam. Como nos anos cinquenta. Só falta o sr. Presidente do Conselho sua excelência Professor Doutor António Oliveira Salazar.

Se se tiver em conta a escassa riqueza que nos vai sobrar, vamos mesmo para o passado, esse país estrangeiro. Mas andar no tempo para trás, só na memória. Por que é que os velhos poupam? Porque se recordam dos seus pais e dos seus avós e da ancestral pobreza que ainda lhes conheceram. Por que é que os de meia-idade e os mais novos não poupam? Porque não sabem o que são verdadeiras necessidades. Vão descobrir agora. O martelo pilão que nos cai em cima todos os dias com impostos, cortes, fim de benefícios, aumentos de preços, etc., pode conseguir colocar-nos a viver um ano ou dois com défice zero, ou seja, conforme as nossas posses. Em teoria, porque não é bem assim, entra dinheiro emprestado e a dívida está sempre a aumentar. É inevitável? Ainda não é, mas vamos a caminho.

Não tem de facto qualquer sentido achar que Portugal foi beneficiado por um plano de "ajustamento" (um eufemismo irónico) mais compatível com o crescimento económico do que o grego e depois destruir a vantagem comparativa numa passagem do oito para o oitenta. Cumprir com zelo o programa da troika é fundamental. Como ninguém controla com rigor a execução orçamental, admito que nesse zelo se inclua "ir mais longe do que a troika" para haver folga para os "buracos". Mas, atenção, duplicar as medidas da troika e aplicá-las no estilo martelo pilão numa espécie de volúpia de impostos, ou pior ainda, como se verá, através de cortes estatísticos, ou seja às cegas, tem um efeito destrutivo muito para além da recessão de dois anos prevista pelos optimistas.

É que o Governo está a precisar de sociólogos e historiadores, ou se quiser apenas de gente com algum saber do país e da vida, que não tenha vindo nem das jotas, nem do marketing, nem dos gabinetes tecnocráticos. Pode ser um padre da província, - um bom sociólogo prático -, ou um médico que ainda trata cirroses, ou um experiente funcionário das finanças, ou um juiz de idade, ou um velho polícia, que já viu muito do que é o seu país e que lhes explique que o Estado em Portugal não é apenas o que vem nos livros de economia, nem da vulgata que hoje passa por liberal. Não é apenas a causa da nossa pobreza, também é a única estrutura que mantém uma frágil barreira contra a pobreza. E não é pelos subsídios, que são estruturalmente perversos, não é pelos "serviços universais e gratuitos", que são socialmente injustos, é por ser o único produto de trezentos anos de acção dos portugueses que ainda tem "estrutura", que não se desmancha como um castelo de cartas. Até agora.

E sem Estado, ou com ele a desmoronar-se, ninguém pense que a economia salta da letargia para o dinamismo. É que o martelo pilão da carga fiscal, em conjunto com os cortes cegos pela estatística, não tem como consequência "emagrecer" o Estado, tem como consequência "emagrecer" a sociedade e "emagrecê-la" onde ela era mais precisa. No final, não ficará um Estado mínimo, mas um Estado disforme, que desperdiça pela sua neoplasia mais do que o Estado "gordo" que havia antes.

Eu sou liberal e quero um Estado mínimo, defesa, segurança, negócios estrangeiros e pouco mais. Mas sei que esse Estado não resulta de uma acção de cortes cegos, nem da brutalidade fiscal que suga os recursos do trabalho e das empresas. E também sei que só pode existir quando for a economia e as empresas a gerarem a riqueza que permitam "emagrecer" o Estado de funções que a pobreza e o remedeio lhe exigiram. E sei, tão certo como dois e dois serem quatro, que isso exige, mais que tudo, conhecimento e inteligência, até porque as condições políticas existem. Destruir a pouca folga que a troika deixou não mostra nem uma coisa nem outra. Mostra que só se sabe fazer uma coisa: bater como o martelo pilão.  Da próxima vez vão taxar os passarinhos nas gaiolas.

As pessoas regressam a casa com o martelo a cair-lhes em cima da cabeça. Muitas já levaram com ele com toda a força: os desempregados que vêem terminar os seus subsídios. Outros começam a perder os seus bens, levados pelo banco ou pelo fisco. Outros apenas, um gigantesco apenas, estão a perder dinheiro e qualidade de vida. Como é que podem ter esperança, o "dever do sentimento" no dizer de Pessoa, alguma coisa que os tire ou da revolta ou da apatia? Não podem. Aí vem o martelo.

 Deixem o Hulk para a banda desenhada. Força inteligente em vez de força bruta

(Versão do Público de 3 de Setembro de 2011.)

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"...posses. Deveríamos poupar uma vida inteira para comprar casa só no
fim. Ir ao médico só muito doentes. Ir ao hospital só de maca. Andar
dois ou três quilómetros para apanhar uma camioneta. Ir ao restaurante
uma ou duas vezes ao ano e só nas cidades. Emigrar em massa para
qualquer "batimento" antes na França, agora em Angola. Cada dez
famílias, uma ter um carro utilitário, que de vez em quando leva a
família toda numa grande excursão a Fátima. Fazer dois anos de serviço
militar obrigatório, escola profissional dos pobres, pré, comida e
alojamento de graça e relações sociais úteis para arranjar trabalho.
Como os nossos avós faziam. Como nos anos cinquenta. Só falta..."

Tenho 35 anos e vivi neste país que descreve, mas eram os anos 80, não os 50. E não vivia nos "casais" vivia em Coimbra. Na minha rua apenas a minha família e a do meu vizinho tinham carro, ou seja o meu pai tinha de ser o taxista das Sras. Marias que estavam muito mal e tinham de ir já para hospital às 3 da manha. O telefone de minha casa era o da "rua", pois não havia outro, e havia sempre alguém que pedia ao "menino andré" para marcar o numero porque se tinha esquecido dos óculos, que é algo muito mais simpático de se dizer do que: não sei ler nem escrever.

A filha da vizinha da frente que tomava conta de mim de quando a quando escapava-se sempre que podia para a casa de banho para saber o que era um banho de imersão, e vários vizinhos batiam à porta no fim do mês para uma "latinha" de atum ou de salsichas, porque "não tinham tido tempo de ir ao supermercado". Havia famílias de 9 em casas de 3 quartos com pouco de 60m2 (sim eu sei o que são 60m2), e ninguém alguma vez tinha ido de férias.

Tudo isto mudou e nada mudou, mas escrevo-lhe só para lembrar que esse país está a 30 anos de distância e não a 60, isto em Coimbra é claro, porque no "portugal profundo", nos "casais", ainda há disto muito amiúde.

André Mota

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