ABRUPTO

12.9.11


ESTÁ QUASE TUDO NA MESMA: 
O "QUASE" É IMPORTANTE, MAS O "NA MESMA" AINDA É MAIS

A dez anos do 11 de Setembro, corre-se o risco, o enorme risco, de achar que o mundo que deu origem ao atentado mais catastrófico da história da humanidade acabou, está derrotado, está ultrapassado. Quem pensa assim não acha obviamente que tenha sido a ofensiva de Bush no Afeganistão ou no Iraque, ou o Patriot Act, que derrotou o terrorismo fundamentalista, mas sim que a Al-Qaeda se tornou passado porque a "rua árabe", que antes era uma, agora diz-se que é outra. A ideia de que os recentes acontecimentos no mundo árabe (em particular no Egipto e na Tunísia) mostram que o fundamentalismo "perdeu o apelo nessas sociedades", "perdeu a rua árabe", é enganadora e muito perigosa.

Essa ideia parte de um equívoco central: o de que o fundamentalismo pretendeu "conquistar a rua", e não o conseguiu. É uma típica maneira ocidental de olhar os acontecimentos, e que esquece que a Al-Qaeda é um movimento político extremista, messiânico e radical, para quem ter ou não muitos seguidores interessa pouco, mas, pelo contrário, ter soldados e "bases" interessa muito. É um movimento que entende que a "propaganda pelo exemplo", pelo exemplo do "martírio" e pela destruição maciça do adversário, é o instrumento essencial da vitória, não o voto nas urnas.

O fundamentalismo muçulmano partilha de uma lógica semelha aos bolcheviques: a vanguarda, o partido, é que era tudo, o parlamentarismo e as eleições eram meramente instrumentais. Embora possa circunstancialmente ganhar peso eleitoral, como se viu com a FIS argelina e o Hamas e se pode vir a ver com a Irmandade muçulmana no Egipto, não é esse o seu principal modus operandi, nem o seu objectivo. Como todos os grupos extremistas, vive do fervor religioso e político, militantismo, lógica de grupo pequeno fechado, e de um discurso que pouco tem a ver com a realidade à volta, se entendida globalmente, mas com uma narrativa histórica, religiosa e profética, ancorada em parte da tradição islâmica, mas nem por isso menos autista. A lógica terrorista é semelhante à dos outros grupos terroristas, como a RAF ou as Brigadas Vermelhas. É a do grupúsculo mais interessado na "purificação" dos próximos, - os dirigentes "moderados" muçulmanos são um alvo primordial - e no aniquilamento dos inimigos, do que pela conversão das massas. A grande diferença é a pulsão apocalíptica que os movimentos assentes numa ideia de "luta de classes" ou nacionalistas não têm. A excepção é o  nazismo que tinha igualmente uma componente apocalíptica.

O 11 de Setembro combinou uma série de processos que já estavam em curso e o espectacular sucesso de um atentado que podia ter consequências mais modestas - as torres podiam não ter caído, o sequestro de um ou mais aviões ter falhado - revelou-os aos olhos de todos. Na época, eles permaneciam ocultos e a atribuição dos atentados a um grupo de que ninguém tinha ouvido falar, a Al Qaeda, foi recebido com cepticismo. Mas o mais grave é que esses processos estão ainda em curso, não desapareceram. Um, é o aparecimento de um modelo de grupo terrorista associado ao fundamentalismo muçulmano, dotado de meios, base, narrativa e recrutas, com uma condução política, liderança organizacional, rede de contactos e know-how, que hoje se reproduzem por si próprios sem necessidade de condução à distância, nem de legitimação dada por ninguém. Morto Bin Laden, a legitimação de qualquer destes grupos é a eficácia da sua acção: quantos mais estragos e mortes fizerem, mais força e influência têm. Foi o que aconteceu com o grupo de Zarqawi no Iraque, ainda Bin Laden estava vivo. E, mesmo com os movimentos que têm existido nos países árabes, entendidos como "democratizadores" pela opinião pública ocidental, nem por isso os grupos fundamentalistas perderam a capacidade de estarem como "peixe na água" em grande parte do mundo muçulmano. Deste ponto de vista, o terrorismo de extrema-direita, de que os melhores exemplos são Timothy McVeigh e Anders Breivik, está longe de ter "água" para o "peixe". São obra isolada e que podem gerar atentados copycat, mas não geram influência.

É por isso que, por muito que a Al-Qaeda esteja enfraquecida, nem por isso os riscos diminuíram. Nas próximas décadas, como na década de 2001 a 2010, há-de haver sempre alguém a tentar fazer ir pelos ares o maior número de infiéis e alguns fiéis como vítimas colaterais. De 2001 a 2011, não passou um dia sem que, em nome da Al-Qaeda ou de qualquer outro grupo semelhante, alguém numa casa de Brooklyn, num restaurante paquistanês de Londres, numa escola corânica de Peshawar, numa barbearia de Marselha, estude explosivos, improvise um colete armadilhado, tente fazer sarin ou rícino, ou pense em atirar um avião contra um prédio governamental ou uma sinagoga judaica. E esses grupos seguem também a Al-Qaeda na aceitação de formas de terrorismo apocalíptico, em que a maximização das vítimas é essencial, para que haja o efeito pretendido. Uma maior eficácia das forças de segurança e dos serviços de informação tem impedido quase todas as tentativas, que muitas vezes não são  divulgadas  para preservar fontes e métodos de investigação, mas que as há, há.

O problema para os nossos dias de 2011 é que é cada vez mais fácil fazê-lo, cada vez mais fácil encontrar as armas adequadas para matar num só golpe muita gente e criar situações de profunda disfunção na sociedade ocidental. Não é preciso ir mais longe para compreender, como todos os serviços de informação sabem, que o armamento biológico e químico é o que oferece melhores perspectivas para os grupos terroristas. Podem ainda depender do stock dos "mártires" disponíveis e das escolas de bombistas suicidas que existem da faixa de Gaza ao Paquistão, mas a arma quase perfeita, a não haver uma bomba nuclear, é a biológica e, em menor grau, a química. Os ataques ainda não esclarecidos de antrax nos EUA (mas que parecem nada ter a ver com o terrorismo fundamentalista), o ataque em Tóquio com sarin mostram o potencial destas armas, que podem ser manufacturadas num comum apartamento e que são especialmente adequadas a criar um estado de pânico muito mais contagioso do que a bomba que explode e se extingue na explosão com os gritos dos feridos.

Por outro lado, as sociedades modernas são especialmente propícias ao sucesso de atentados que pretendam atingir muita gente. Todos os domingos multidões se juntam para assistir a espectáculos desportivos, milhares de quilómetros de linha férrea de alta velocidade são impossíveis de guardar com eficácia, grandes obras de engenharia estão facilmente acessíveis, e todo um mundo feito de multidões em movimento, rapidez, máquinas poderosas, velocidade e impactos violentos mostram a fragilidade da segurança possível e as oportunidades para o terrorismo apocalíptico.

Face ao 11 de Setembro, podemos fazer longas prelecções sobre como o mundo mudou num dia: sobre o carácter icónico das imagens, sobre o impacto psicológico nos milhões que as viram, sobre as ascensões e quedas de governantes democráticos e ditadores, de grupos de fanáticos religiosos ou governos conservadores, sobre as profundas alterações que ocorreram em países como os EUA, o Iraque, o Afeganistão, Paquistão, Espanha, Reino Unido, sobre as mil e uma discussões acerca da liberdade e segurança, sobre meios e fins. Mas, na sua essência, o 11 de Setembro foi um atentado terrorista particularmente bem-sucedido e é como atentado terrorista que deve em primeiro lugar ser analisado. E quando isso se faz verifica-se que quase tudo continua na mesma: determinação apocalíptica, experiência organizacional, armamento com capacidade de destruição maciça, e vulnerabilidades na segurança, não mudaram muito nos últimos dez anos. É verdade que hoje há uma atenção diferente a este tipo de fundamentalismo e um reforço considerável dos meios de prevenção, mas não custa perceber que matar muita gente ao mesmo tempo continua a ser assustadoramente fácil.

(Versão do Público de 10 de Setembro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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