ABRUPTO

11.7.11


PARAFERNÁLIA



Todas as semanas entram-me em casa entre um e dois metros de papéis, livros, jornais, brochuras, panfletos, cartazes, autocolantes, emblemas, CD-ROM, DVDs disquetes, efémera, a que tenho de acrescentar alguns objectos, que não contam para a metragem, mas que também contam para a vida desta Parafernália. A palavra significa "os bens da esposa (noiva) para além do dote", ou os "bens pessoais", ou a "tralha". O dicionário de Samuel Johnson em que eu tinha alguma esperança de ter uma definição com o humor fino do autor fica-se pelos bens da esposa. O Webster é mais completo mas também anda por aqui e o Houaiss deixa os bens da noiva para o fim e começa pelos bens próprios e pela tralha. Ou seja, a Parafernália, uma bela palavra grega latinizada, não voa muito nos dicionários.

Fiquemos pela tralha porque a tralha é boa companhia, nas alturas em que a política parece ter chegado a um beco sem saída, como é o caso dos dias de hoje em que metade do mundo diz-nos que mesmo que façamos tudo o que devemos fazer ficamos na mesma situação do que não fazendo nada e a outra metade diz-nos que se fizermos tudo o que temos a fazer, talvez possamos fazer outra coisa, cuja não se sabe bem qual é. Para uns, somos lixo; para outros, porcos. Nada é brilhante, tudo baço. Precisamos pois de algum ar puro e novo, ideias e imaginação, coisas novas e baratas e, não havendo forças endógenas, mais vale procurar fora aquilo que se pode aprender. Ora, como o único país estrangeiro pelo qual se pode viajar sem ser com muito dinheiro é o passado, vamos pois à tralha, ao dote da noiva para além do dote, ver o que é que a jovem senhora que preside ao reino da Parafernália trouxe nas suas arcas.

O livro de L. P. Hartley, um autor pouco conhecido por estas bandas, começa com uma frase famosa: "The past is a foreign country: they do things differently there", "o passado é um país estrangeiro, lá fazem-se as coisas de forma diferente". E a enorme vantagem da Parafernália é precisamente permitir essa viagem. Como todas as viagens em que a nossa cabeça viaja mais do que o nosso corpo, nunca são inócuas. Na Parafernália está sempre este constante movimento para o país onde "se fazem as coisas de forma diferente". E como a estranheza é uma novidade, é um excelente meio para sair da nossa triste condição de povo emparedado entre o lixo e os PIGS, e trazer pérolas sem as dar aos porcos. Enriquecer, em suma, aprender, lidar com o diferente, a ver se somos capazes de fazer diferente. Aproveitemos.

Nas colheitas recentes da minha Parafernália está um velho disco de vinil de 45 rotações. Já quase que não há máquinas para o ouvir e faz parte daquilo que os americanos chamam Dead Media. Na capa está um tanque hoje obsoleto (à data do 25 de Abril também já era obsoleto), com toda a Banda de Caçadores n.º 5 dependurada em cima, instrumentos e tudo. Fardada a preceito, uns com ar mais marcial, outros tentando manter o equilíbrio ou encostando-se ao canhão ou por cima das lagartas. No meio, o maestro da banda, capitão Sílvio Lindo Pleno, então o mais novo maestro de uma banda militar e, mais tarde, com uma carreira que o levou ao S. Carlos e a Paris, tendo antes e depois regido várias bandas de "Sociedades Filarmónicas".

O disco chama-se Amanhecer Heróico e agrupa quatro músicas: "Marcha Patriótica 25 de Abril", "A Mais Bela Herança", "Grândola Vila Morena" e "Cravo Livre", adaptadas ou originais de José Afonso, José Calvário, Luís Alcaria e do próprio Capitão maestro. O disco, edição da Telectra, faz no verso um agradecimento ao Comando das Forças Armadas, à Banda, ao seu Maestro e ao Sr. Alberto Nunes "pelo milagre da captação do som deste disco, que o público irá julgar". O disco que possuo tem uma dedicatória de Dezembro de 1974, o que permite datar o disco dos primeiros meses após o 25 de Abril.

Tudo certo e tudo bem dentro do "país estrangeiro" do passado. Arcaísmos: vinil, forças armadas, "amanhecer heróico", pátria. A unidade militar chamava-se "caçadores", já em si uma antiga designação e tivera origem num batalhão alentejano que participou em várias batalhas e escaramuças da Guerra Peninsular e que, para a memória mais recente, teve um papel destacado no 25 de Abril. Percebe-se o disco, a escolha das músicas e a escolha da banda. À data ainda o 25 de Abril era o "dia inicial inteiro e limpo" em que livres "habitamos a substância do tempo". Eis o passado em estado puro: dias de esperança, esperança dentro do tempo, que não costuma ser muito dador de esperança.

No verso, há uma dedicatória de uma mulher a um homem. (A Parafernália é muito indiscreta.) Nela se diz: "Lembras-te em Julho na Manutenção Militar? Agora que estamos no fim de 1974 é bom recordar os dias felizes que todos nós vivemos e que nunca esqueceremos. Por isso desejo que toda a tua vida seja cheia de 25 de Abril (...)". Não sei se a dedicatória é amorosa ou apenas afectiva, mas esta dedicatória só pode ter sido feita, como foi, nos primeiros meses do 25 de Abril. Não diz "que eu vivi", mas que "todos nós vivemos", não diz "eu", mas "nós". Nós "nunca esqueceremos", uma promessa sobre a memória futura, uma das mais difíceis de cumprir. E o desejo que a mulher faz é que "toda a tua vida seja cheia de 25 de Abril".

É um desejo que se percebe ser de aniversário, talvez para um dos homens que está dependurado no tanque, ou apenas um militar anónimo que participou no 25 de Abril. Não há réstia de politização nesta dedicatória, não há traços do modo como todas as palavras relativas ao 25 de Abril se tornaram menos "limpas", quando se passou do 25 de Abril para o "espírito de Abril". É História pura, tempo perfeito, passado, país estrangeiro onde "se fazem as coisas de forma diferente", um genuíno momento de participação em que o indivíduo e a História não são distintos. Bem longe de nós, bem longe do presente.

Na Parafernália, é o nosso olhar que dá vida, o olhar que não esquece, o olhar que viaja para o país de onde vieram os papéis, os livros, os objectos e que os vê. Insisto: que os vê. Que vê o autocolante onde está a candidata presidencial da LCI Arlete, a fumar na fotografia, e que dizia que era uma coisa e não era. Teve de sair da campanha pela porta baixa. Hoje teria uma carreira gloriosa com tanta gente que diz que é uma coisa e é outra. Ou o folheto de caricaturas intitulado Alemão Nazi em 22 lições, compreendendo informações úteis para führers, "quinta-colunistas", gauleiters e quislings, produzido pela propaganda de guerra inglesa. Aí se explica em "alemão-nazi" o significado de "permuta": "sistema económico pelo qual um exército de ocupação se apodera de cereais, gado, lacticínios, minérios ou petróleo de um território ocupado dando em troca uma fotografia do Führer autografada". Quantas fotografias do Führer autografadas, quantos diplomas de bom comportamento recebemos em troca nesta "permuta" europeia! Ou uma fotografia do trabalho fabril usada numa exposição, com máquinas, operários, peças, stocks, tudo tão arqueológico como um dólmen na vastidão alentejana. Ou o Estatuto do Sindicato Nacional dos Alfaiates, agora que quase não há alfaiates, que me recorda a Academia de Corte Maguidal onde o velho Manuel Guilherme de Almeida, o último dos fundadores vivos do PCP, se queixava da indiferença com que uma menina que registou a sua nova ficha partidária depois de Abril tomou nota da sua data da filiação, 1921.

A Parafernália vale a pena, aprende-se muito no dote da noiva. É que nos dias de hoje o passado tem mais futuro do que o presente.

(Versão do Público de 9 de Julho de 2011.)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]