ABRUPTO

3.7.11


O ICEBERG RTP


Na campanha eleitoral do PSD, a privatização da RTP era apresentada como medida emblemática. Não posso deixar de saudar tal proposta que defendo há mais de dez anos, e que tem conhecido um destino sinuoso dentro do PSD. Cavaco Silva era hostil à privatização, e só com Marcelo de Sousa é que tal proposta foi aceite dentro do PSD. Logo a seguir, Durão Barroso manteve-a de forma mitigada, mas, mal chegou ao Governo, abandonou-a de imediato. Pior ainda, deu à RTP o que ela sempre quis: atribuiu-lhe uma indemnização compensatória pelo "serviço público" a que a esquerda bate palmas ainda hoje.

Conheço de mais todos os argumentos que justificam a existência de um sector público de comunicação social, em particular por comparação com outros países europeus, assentes numa justificação histórica que perdeu muito do seu sentido, e em exemplos e em contextos muito diferentes. Se alguém pensa que a RTP é a nossa BBC, nem conhece a BBC, nem as controvérsias sucessivas que o seu controlo político tem suscitado. Não há país em que haja televisão pública em que não haja também uma contínua controvérsia sobre o seu papel, e em que os argumentos em sua defesa não sejam estatistas, seja em versão de esquerda, seja de direita.

Outra coisa é ter ou conceber a existência de um "serviço público" de comunicação que pode e deve ser concertado com os operadores privados, pode implicar linhas de financiamento no âmbito da cultura, ou dos negócios estrangeiros (a função da RTP África é geoestratégica), e que necessita de ser definido sempre de uma forma minimalista. Foi, aliás, a defesa deste "serviço público mínimo" o teor da minha primeira intervenção parlamentar em 1987 e, como já escrevi, há muito anos, o serviço público é uma coisa, os canais públicos são outra.


A presença do Estado na comunicação social é muito vasta e está longe de poder ser reduzida apenas à RTP. O sector Estado inclui no sector de televisão, quer em sinal aberto, por cabo ou online, a RTP1, RTP2, RTP Madeira, RTP Açores, RTP Internacional, RTP África, RTPN, RTP Memória e RTP Mobile. Na rádio inclui, quer em sinal aberto ou online, a Antena 1, Antena 2, Antena 3, RDP Internacional, RDP África, RDP Madeira-Antena 1, RDP Madeira-Antena 3, RDP Açores-Antena 1, Rádio Lusitânia, Rádio Vivace, Rádio Antena 1 Vida, Antena 3 Rock, Antena 3 Dance, Antena 1 Fado. Tem igualmente uma participação maioritária na Lusa. Em bom rigor deveria acrescentar-se a esta lista os órgãos de comunicação social detidos ou participados pelos governos regionais e pelas autarquias. Não existe também qualquer definição explícita e clara do que é o serviço público, nele cabendo desde o futebol, os concursos, espectáculos musicais, telenovelas, música rock, programas de variedades, e pelos vistos, o Preço Certo. Isto significa que o Estado detém o maior grupo de comunicação social português.

O financiamento deste sector público na comunicação social foi nos últimos anos mais vultuoso do que o de qualquer empresa pública. A RTP é financiada essencialmente por fundos públicos com origem quer na Indemnização Compensatória quer pela Contribuição Audiovisual, que se paga junto com a electricidade. Cegos e surdos pagam a Contribuição Audiovisual, mesmo que não vejam televisão ou ouçam rádio.

Entre 2003 e 2009, a RTP recebeu do Estado cerca de 2000 milhões de euros, o que dá cerca de 300 milhões por ano. Em 2010 recebeu 308 milhões de euros, muito mais do que recebe a CP, a Carris, a STCP, o Metro, a Refer, todos os teatros nacionais e todas as indemnizações compensatórias nos transportes locais, regionais, de barco, camionagem, avião, etc. (valores da Resolução do Conselho de Ministros n.º 96/2010). Só a RTP recebeu em 2010 mais de cinco vezes o que recebeu a CP.

Ora, quer no programa eleitoral, quer no programa de Governo, a fórmula relativa à privatização da RTP é muito ambígua, como aliás é, por derivação, a fórmula quanto à rádio. No programa do PSD diz-se que "o universo de rádios da Antena 1, 2 e 3 seguirá os mesmos princípios gerais a aplicar à RTP"; e no programa do Governo está "a Antena 1, 2 e 3 seguirá os mesmos princípios gerais a aplicar à RTP." O único caso em que a decisão de privatização é clara é a Lusa, embora a fórmula vaga "momento oportuno" também aqui esteja.

Voltemos à televisão. No programa do PSD diz-se: "Ir-se-á proceder, em momento oportuno, à alienação ao sector privado de um dos canais públicos comerciais actuais. Quanto ao outro canal, hoje comercial, ficará na esfera pública e será essencialmente orientado para um novo conceito de serviço público." No Programa do Governo há uma outra fórmula: "O Grupo RTP deverá ser reestruturado de maneira a obter-se uma forte contenção de custos operacionais já em 2012 criando, assim, condições tanto para a redução significativa do esforço financeiro dos contribuintes quanto para o processo de privatização. Este incluirá a privatização de um dos canais públicos a ser concretizada oportunamente e em modelo a definir face às condições de mercado." Em ambos os casos há uma fórmula que implica apenas a privatização de um só canal, o que levanta o problema de se saber se esse canal é a RTP1, o único caso em que tem sentido falar de "privatização da RTP" como medida com significado político. Se for a RTP2, tudo permanece na mesma em termos da presença do Estado, ou seja, não há verdadeira privatização da televisão.

Porém, quando se lêem os dois programas a diferença vai mais longe. No programa do PSD um canal comercial (RTP1 ou 2) será privatizado, o outro será "orientado para um novo conceito de serviço público", o que não se sabe muito bem o que é. No Programa do Governo um dos canais públicos será privatizado (admito que "público" aqui significa em sinal aberto, porque a RTP África, RTP N, RTP Memória são também canais públicos) e não se diz nada sobre o destino do que sobra. Em ambos os casos o tempo é o "oportuno" (tempo bem menos preciso do que o de outras privatizações), mas acrescenta-se "em modelo a definir face às condições de mercado", e aqui é que está a frase- chave que não aparece no programa eleitoral e que muda tudo.

Sabemos o que aconteceu entretanto, embora se esteja longe de saber tudo. Sabemos que os donos da SIC (declaração de interesse, participo em dois programas da SIC) e da TVI, afirmaram com veemência que a privatização de um canal aberto da RTP criaria uma situação de falência no sector, dada a escassez da publicidade gerada pela crise, tornando "impossível" a viabilidade de três canais privados. Sabemos também que os grupos de comunicação social que não têm televisão ligados à Ongoing e à Cofina pretendem o novo canal. Aparentemente a fórmula "face às condições de mercado" significa que a posição e os interesses da SIC e da TVI foram tomados em conta e que, como "as condições de mercado" não vão mudar tão cedo, também não haverá privatização da RTP, naquilo que conta, a RTP1.

Existe uma outra alternativa, o fim do sector de comunicação social do Estado, por pura extinção. Isso implica definir com toda a clareza o serviço público a contratar e a multiplicidade das suas novas "encomendas", e defender os direitos dos trabalhadores. Não percebo que um Estado que fecha hospitais, permite a morte lenta dos Estaleiros de Viana, que, no fundo considera normal, e não possa acabar com a RTP se entende que as "condições de mercado" não permitem a sua privatização, o que aliás ainda está por demonstrar.

A razão principal pela qual defendo o fim da RTP e de todo o sector público de comunicação social tem sido sempre a mesma: não cabe, dentro do que entendo serem funções do Estado, ter órgãos de comunicação social. A questão dos custos e o papel perverso de órgãos de comunicação social com comando político é igualmente relevante, mas para mim o que é essencial é considerar que não há nenhuma razão para o Estado ter órgãos de comunicação social numa sociedade aberta e livre, em que existem grupos privados de comunicação social, mesmo no sistema de competição imperfeita actual. Agora, que toda a gente usa o qualificativo liberal a torto e a direito, aqui tem uma genuína posição liberal, liberal de liberdade.

(Versão do Público, 3 de Julho de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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