ABRUPTO

16.7.11


COISAS DA SÁBADO: O TRABALHO DA CEIFEIRA

A ceifeira continua a trabalhar com eficácia, a matar gente. Vários amigos meus desapareceram e convém esclarecer que não eram amigos como aqueles que existem no Facebook, ou, como também é moda na blogosfera, amigos de ter trocado um email e passar-se a ser íntimo publicamente na hora da morte para ver se alguma sombra da fama alheia nos cai em cima por pressuposto contacto. Esta necrofilia é infelizmente muito portuguesa e uma variante do fishing for compliments, também muito habitual para esses lados. 

Da Maria José Nogueira Pinto já quase tudo foi dito com genuína emoção ou com muita hipocrisia. Que a mão do Pastor lhe dê a perpétua felicidade. Até porque ela fez mais pela fé em que acreditava do que uma Igreja inteira. O valor da propaganda pelo exemplo, uma expressão de origem anarquista, é o mais poderoso de todos. De Diogo Vasconcelos, basta apenas dizer que ele era uma dessas raridades na espécie humana, um homem genuinamente bom. Podia ser amanuense, trabalhador rural, electricista, ou génio da socialização das novas tecnologias, que o ser bom precede sobre tudo o resto. 

E falta aquele de que menos se fala, o Jorge Lima Barreto, um homem estranho e raro, solitário e tenaz na sua arte e ideias. Fiz com ele, numa semana de recepção aos novos alunos na Faculdade de Letras do Porto, um dos primeiros happenings que se fizeram em Portugal, num período em que a politização estava a vir por via da radicalização estética. Ângelo de Sousa também teve uma pequena participação no evento, de que resta apenas um cartaz, uma colagem e uns papéis manuscritos que guardo e nenhuma fotografia. O Jorge estava a tornar-se então uma raridade nos meios estudantis e intelectuais da época, no fim dos anos sessenta, à volta de 1968, pela maneira de ser e vestir. Lembro-me muito bem da mesa do Majestic que ocupava regularmente com um seu companheiro muito alto, mas que nunca abria a boca, um par absolutamente de filme até porque usava coisas tão estranhas como um fez na cabeça. O Jorge caminhava então para a mais árdua e solitária das artes em Portugal: ser músico experimental no limite de todas as vanguardas, algo de que “não se gosta” porque composto como “cosa mentale” e que não agrada aos sentidos, nossos senhores. Toda a vida experimentou e todas as vezes que nos falamos ele trazia esse entusiasmo da exploração, que fazia com os sons e com a vida. Uma vez disse-lhe que ele parecia o Santa-Rita Pintor. Ele gostou da comparação e eu disse-lhe “vê lá se vives um bocado mais do que ele”. Viveu.

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]