ABRUPTO

18.7.11


A COISA ESTÁ A ESBOROAR-SE


Há um ciclo de estertor no sistema político português que não parece incomodar ninguém dentro dos partidos. De fora, ele é visto como mais um sinal de que os partidos são uma espécie de "associações de malfeitores", e que os partidos não são precisos para nada com as novas formas de "democracia do Facebook". Entre os telefonemas para os fora das rádios e televisões, as acampadas e candidaturas como a de Nobre, a fronda contra os partidos em democracia está impante.

De dentro, do PS e do PSD, está tudo bem. Como não podia estar bem no PSD, agora que ganhou as eleições? Não os preocupa o facto de o Governo, cujos principais actores partidários vêm do mais íntimo do aparelho do PSD e da JSD, se veja aflito para tornear o conhecimento público das nomeações, que inevitavelmente fará, de gente do PSD? E tenha de estar a protestar isenção partidária todos os dias e a toda a hora? Será que o grau de pestífero público que hoje um militante partidário tem de suportar não lhes mostra que alguma coisa está muito mal? Pelos vistos não, até estamos no Governo...

No PS, então, o debate actual revela a completa inanidade de um pensamento sobre a crise partidária. Seguro diz que é preciso "refundar o PS", ecoando as palavras de Soares, mas não acha que isso tenha nada de dramático ou especial. "Refundar" um partido é coisa trivial, são duas palavras só e ficam bem no discurso. Não promete Seguro um "novo ciclo" quando chegar ao poder, de que não se percebe um átomo porque é novo, e mudar o nome de Gabinete de estudos para Laboratório de ideias? Já chega para "refundar" o partido, não é? Não ama Seguro os militantes socialistas e os proclama intangíveis à crítica em todas as frases com que tenta encravar Assis, suspeito de os não amar com tão acrisolada paixão?

De facto, Assis tem mais consciência do problema e introduz uma proposta que representa uma tentativa de alargar a base eleitoral do PS numa eleição interna, para combater os sindicatos de voto que estão quase todos com Seguro. Ele coloca bem o problema da "dimensão" necessária a qualquer democracia, para que não votem apenas os caciques e o povo miúdo cacicado, familiares, primos uns dos outros, e possa haver alguma abertura à opinião exterior aos arranjos do aparelho. Mas essa "dimensão" só funciona perante eleitorados muito mais vastos, o que significaria que apenas em Lisboa e no Porto, onde aliás Assis tem a maioria dos seus apoiantes, poderia o voto dos simpatizantes registados fazer a diferença. E um outro problema se levanta quando passamos para um universo mais vasto do que os militantes partidários: o facto de, então, o confronto passar a ser feito no sistema mediático e poder favorecer o protagonismo e o acesso aos media. Talvez também por isso, Assis quer mais debates abertos e Seguro impede-os.

O próprio facto de nenhum dos dois ser capaz de fazer qualquer reflexão crítica sobre os anos de Sócrates (como aliás Marques Mendes não fez de Santana Lopes e nunca se fez no PSD de Cavaco), mostra que nenhum debate é possível dentro dos partidos sem ser visto como acrimónia pessoal ou quase uma traição à camisola. Os partidos dão-se bem com a intriga e mal com o debate, dão-se bem com as fontes anónimas e mal com as declarações frontais. Ora, se não é possível, quer no PS quer no PSD, reflectir criticamente sobre a sua própria acção, sem isso ser visto como uma espécie de traição, mata-se a possibilidade de estes mudarem e contribuírem para a mudança.

O PS abandonou o marxismo frentista com que vinha de antes do 25 de Abril, "meteu o socialismo na gaveta", virou católico envergonhado e depois voltou à Maçonaria, passou dos militantes históricos de 1974-6 para os ex-MES, tentou tirar o socialismo da gaveta e logo a seguir meteu-o ainda mais fundo na gaveta e fechou-a à chave, que Sócrates engoliu num acesso de fúria. Criou uma central sindical e deixou-a ir a uma semivida própria, sem fulgor nem papel. Em todos estes casos, nem com Soares, nem Constâncio, nem Sampaio, nem Guterres, nem Sócrates, se discutiu nada sobre o que se passava dentro e fora de portas. Ficou-se preso, nos últimos anos, numa vulgata de "Estado" e "sector público" que permanecia como um retórica pobre e era contrariada em cada acção prática. O PS já nem tem socialismo nem social-democracia, nunca teve reformismo nem se sobressalta quando a liberdade é ameaçada, na maioria dos casos por si próprio. Permaneceu anticomunista, mas namorou o Bloco de Esquerda, como antes tinha namorado todas as esquerdas "independentes", dos pintassilguistas aos antigos MRPP e aos ex-comunistas. É hoje tão socialista como o PSD, que ainda há pouco tempo era mais socialista que o PS, mas agora já não é, sem por isso passar a ser liberal. O PS está numa confusão ideológica total, e ninguém quer saber disso para nada.

Por outro lado, mesmo algumas peculiaridades da sua composição social que o faziam distinto do PSD, a sua relação com as universidades, os intelectuais, o sector da cultura de esquerda, a sua base tradicional no professorado e nos funcionários, tudo isso se desvaneceu ou não funciona como factor identitário. Escolhendo Seguro, o PS fica irremediavelmente parecido com o PSD na escalada das escolhas internas aparelhísticas, de personalidades nascidas dentro, criadas dentro, aprendendo tudo o que sabem dentro e sabendo muito de dentro. Tiques, linguagem, o modus operandi de Seguro é exactamente o mesmo que se vê por todo o lado no PSD, como se os dois partidos tivessem como molde o estatal Instituto Português da Juventude, desde os tempos do ministro Couto dos Santos. Vai ter graça ver os intelectuais arrogantes do PS a irem ao beija-mão de Seguro...

O problema não está em que os partidos tenham aparelho, está em se substituírem os objectivos e as funções cívicas dos partidos em democracia pelos objectivos dos aparelhos e das carreiras dos seus membros. Há alguns dias alguém escrevia (cito de memória) que uma das carreiras com maior mobilidade vertical disponíveis para os jovens hoje, em Portugal, eram as juventudes partidárias. Tem toda a razão. Em que outra profissão um jovem pode ter acesso relativamente fácil a um vasto conjunto de lugares na administração, nas empresas públicas, nas autarquias, nas assessorias nos grupos parlamentares, nos gabinetes ministeriais, como deputados municipais, vereadores, deputados nacionais, etc., etc? E em que outra profissão isso é possível sem adequadas qualificações académicas, com cursos de plástico e sem qualquer experiência profissional? Em lado nenhum. E como a democracia em Portugal já tem mais de três décadas, esse acesso já começa a ser familiar, com os filhos de políticos a ingressarem na carreira política com promoções rápidas e "protagonismo" fácil e quase imediato. O poder dos pais abre caminho à carreira dos filhos e, como alguém disse a alguém há alguns anos, "o que custa é entrar, depois de estares lá dentro estás sempre garantido".

Esta forma de perversão do sistema democrático domina hoje os dois maiores partidos portugueses, fechando-os a qualquer mudança vinda de dentro e tornando-os um dos maiores problemas de sustentabilidade do regime. Isto está a esboroar-se e eles serão os últimos a saber.

(Versão do Público de 16 de Julho de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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