ABRUPTO

13.6.11


SEMPRE O MESMO

Com o tempo, vai-se vendo a mesma coisa várias vezes e perdem-se as ilusões. Já vi várias "mudanças" que depois se esvaem na areia como um rio no deserto. Com o tempo, aprende-se alguma coisa com os comportamentos políticos, quer dos agentes políticos, quer dos da comunicação social que com eles fazem o contínuo político-mediático, que reagem aos mesmos estímulos e que reproduzem os mesmos comportamentos. Com o tempo, vai-se percebendo que há um fundo mais permanente por detrás da espuma dos dias e que esse fundo tem muito lodo, mas também muita biologia, e muda muito pouco. Só quem nele toca com uma vara funda, alterando a ecologia inscrita nas profundezas, é que realmente muda. Costuma ser "tocado" apenas por gente excepcional, que não abunda e costuma precisar de muito tempo para mudar, ou então de uma catástrofe curta e traumática. Com o tempo, também se desconfia da "novidade", mas também se pode perder a capacidade para se perceber o novo. Não há vantagem que não venha com defeito.

Digo isto porque não é para mim novidade o que se está e vai passar. Nestes dias mais imediatos a força impõe-se, entranha-se e respira-se, e é a isso que sempre chamei a forte pulsão para o situacionismo na vida pública portuguesa. Com o situacionismo vem uma demissão crítica e, com o tempo, uma dificuldade de ter liberdade de pensamento, preso que se está aos compromissos dos primeiros dias que se tornam afirmações do ego, logo impedem que se perceba o auto-engano. Foi o que aconteceu durante demasiado tempo com José Sócrates, que ganhou a sua maioria absoluta num processo que tem paralelismos com o actual: a rejeição de Santana Lopes tinha elementos parecidos com a rejeição de Sócrates, mas, verdade seja dita, sem a dimensão de responsabilidade no desastre nacional a que o PS e o seu Governo levaram o país.

Quem louvou Sócrates de forma quase hagiográfica precisou de muitos anos para poder esquecer-se do que tinha dito sem sentir que se enganou, e precisou da viragem da moda, da mó de cima passar a mó de baixo, para se poder esquecer do que tinha dito e sentir que podia criticar sem se pôr em causa. Mas, na louvação a Sócrates, como aliás a Guterres e mesmo a Barroso e Santana, embora em menor grau e com menos tempo, está presente aquilo a que já chamei em circunstâncias idênticas o "argumento da força", o "argumento hegeliano". Esse "argumento" pode ser expresso doutra maneira: "O que tem que ser tem muita força" , ou o "que existe tem muita força", ou seja, o poder interioriza-se como uma inevitabilidade e como uma caução acrítica, pelo mero facto de existir. E basta ler os jornais e ouvir os comentários para se perceber dois movimentos deste "argumento hegeliano": um é a interiorização do argumentário do adversário como sendo o nosso (Luís Amado interpretado por Teresa de Sousa é um típico exemplo dessa interiorização), outro é a ideia de que os resultados eleitorais dão uma superioridade racional às ideias e programas do vencedor. Em ambos os casos são os resultados eleitorais que representam aqui a "força" que é transposta para onde não deve, para a superioridade racional e mesmo moral do lado vencedor.

Ora os resultados eleitorais em democracia permitem duas consequências essenciais - a legitimidade de governar e de o fazer com o programa com que se apresentou ao eleitorado -, mas não dão uma caução racional a esse programa. Ironicamente José Sócrates disse-o na sua intervenção de despedida, ele que nunca aplicou a si próprio tal distinção entre a força do voto e a razão programática. Em bom rigor, em democracia não há racionalidade no sentido filosófico a não ser como "razão política", no sentido da "razão" legitimada quer pelo voto, quer pela assunção da diferença das "partes" que são os partidos. Ou seja, é na sua essência plural e contraditória e não única, no sentido de não poder (dever) haver "pensamento único". Uma variante desta ilusão foi expressa por Cavaco Silva quando disse que duas pessoas "racionais" e "bem-intencionadas" tinham que inevitavelmente estar de acordo entre si para além de políticas, partidos ou ideologias. Não é verdade. Exactamente porque estamos numa democracia, a política expressa ideologias, maneiras diferentes de ver o mundo, interesses sociais diversos, mesmo personalidades e estilos, que podem convergir ou afastar-se, mas que nunca são um "partido único". Esta ideia é muito comum na concepção tecnocrática do exercício do poder que considera que as soluções técnicas são indiscutíveis e por isso devem ser aplicadas em qualquer circunstância, independentemente da vontade popular, acabando por considerar que a política e a democracia são apenas fontes de ruído que impedem o governo perfeito, um governo de "sábios", um governo de burocratas. A nossa situação actual de país tutelado por burocracias internacionais, assim como o ascenso nos últimos anos de uma dominante tecnocrática de "pensamento único" com origem na hegemonia do discurso económico (aliás mais empresarial do que económico), reduzindo a política à economia, favorece estas concepções que são aliás muito fortes na actual maioria. Uma das consequências destas ideias é a plena compreensão dos constrangimentos económicos e financeiros e uma incompreensão profunda dos constrangimentos sociais.

O que mais me interessa sublinhar é que a interiorização da força do voto como força da razão tende a gerar não só um "pensamento único" como também uma pulsão autoritária contra a liberdade crítica. Nos blogues "vencedores" isso percebe-se muito bem, com vários candidatos a quererem ser a Câmara Corporativa (o blogue operacional do gabinete de Sócrates) do novo poder, mas também é visível no comentário e nos artigos de opinião com a tendência para o situacionismo, a submissão acrítica e o pendor inquisitorial contra os que não aceitam a "situação" e que se tornam ,ao quebrar o unanimismo, particularmente incómodos.

Uma coisa é o apoio por convicção e concordância, que pela sua natureza em democracia tende a ser por issues, ou exprimir uma confiança pessoal e política em alguém, o que também é normal e até salutar no meio do cinismo dominante; outra é o apoio por "situação", que facilmente degenera no clubismo partidário ou no clubismo ainda mais perverso dos "amigos do Governo" e dos seus "inimigos". Tende também a originar cálculos de carreira: dei tanto por "isto", que mereço receber alguma coisa em troca pela minha dedicação e fidelidade.

No momento actual de miséria da nossa soberania e de enormes dificuldades da vida nacional e de empobrecimento dos portugueses, a apatia crítica é o que menos se precisa. Lutei muito para contrariar a claustrofobia do "socratismo" quando este estava impante e poderoso e recebia a compreensão amigável de muitos dos próceres do actual poder. Não me admira por isso que quem achava "normal" os avatares de Sócrates queira agora ser avatar de Passos Coelho. Eu compreendo-os: a independência pessoal e a liberdade de interesses, tutela e carreiras são muito raras em Portugal, onde, como já o disse várias vezes, os bens são escassos, a fome é muita e todos somos primos uns dos outros.

Sirvam, pois, estas palavras como o meu programa para os tempos mais próximos. Semper idem.

(Versão do Público de 11 de Junho de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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