ABRUPTO

20.6.11


QUE VIVAS EM TEMPOS INTERESSANTES!


A frase "que vivas em tempos interessantes" é conhecida como uma maldição chinesa. Para escrever este texto fiz algumas procuras na Rede e em dicionários de citações e afinal parece que a frase não é chinesa, mas podia ser. Aliás não se sabe muito bem de onde veio, e é mais provavelmente inglesa, já como chinoiserie, do que chinesa ou persa ou judaica, como outras atribuições sugeridas. A entrada na Wikipédia sintetiza as dúvidas sobre a origem da frase e refere que o mais parecido que se encontrou em chinês foi um provérbio que diz "mais vale ser um cão em tempos de paz do que um homem em tempos de caos". Não está mal, mas não é a mesma coisa.

Mas, para nosso mal, vivemos mesmo em tempos da maldição chinesa e não adianta fazer imprecações à normalidade, que ela não existia, não existe e não existirá. Não é a anormalidade que está em causa, pois ela própria já é demasiado normal há muito tempo, mas sim o facto "interessante" de ter dado origem a uma situação com algum grau de novidade em relação ao passado. A anormalidade deu origem a uma conjuntura nova, e é nela que vivemos os nossos "tempos interessantes".

É sempre possível encontrar algum paralelismo histórico como, por exemplo, com a crise de 1917-9, com a guerra, a "crise das subsistências", o bolchevismo no horizonte, a pneumónica e Nossa Senhora a falar aos portugueses. Só que agora o agravamento da anormalidade gerou uma situação que não tem de facto nenhum verdadeiro precedente na nossa história contemporânea: um país falido (não é novidade, mas também não é muito comum na nossa história), um governo tutelado ao minuto pela Alemanha (uma novidade, costumava ser a Inglaterra ou os EUA), com um governo de um país ocupado (não é novidade veja-se Beresford), um agravamento brutal e rápido das condições de vida da classe média (uma novidade muito perigosa) e um empobrecimento dos mais pobres (com menos novidade, mas, mesmo assim, com enormes estragos no tecido social). Depois acrescenta-se o facto de a nossa aliança estratégica central com a União Europeia estar debilitada pelo nosso estado de necessidade e impotência face a uma crise mais geral da própria União, do "modelo social europeu", e uma crise ainda mais geral do Ocidente enquanto modo de vida e poder mundial. Para usar palavras alheias, uma "tempestade perfeita".

Por isso, vamos ter que, em plena anormalidade, compreender a novidade, defrontar uma situação para que nenhuma experiência prévia serve muito. As comparações são por isso muito enganadoras, como seja a comparação da situação actual com anteriores intervenções do FMI. Se estivéssemos na Revolução Francesa, podíamos fazer um calendário novo, começando no ano actual como ano 0, o início da nova era. Se fosse assim, o período de 2000 (Antes da Crise) até 2008 (AC) seria o período do Declínio do Antigo Regime e os anos de 2008 (AC) a 2010 (AC) os da Queda do Antigo Regime. Como serão os anos Depois da Crise (DC)? Não sei, mas que serão muito bizarros, serão, a julgar pelos Sinais.

Alguns desses Sinais já se podem perceber. Por exemplo, imaginem um debate parlamentar entre António José Seguro (líder do PS e da oposição) e Pedro Passos Coelho (primeiro-ministro e líder do PSD). Ambos têm a mesma formação política, ambos vêm da mesma escola política, as "jotas", ambos já fizeram várias vezes pactos "geracionais", ou seja, afirmaram uns aos outros "tu tomas conta do teu partido e eu do meu e depois colaboramos" (isto não é ficção), ambos falam o mesmo politiquês, ambos têm a mesma extrema atenção aos poderes interiores nos partidos, que são a sua base de apoio e o factor da sua ascensão.

Ninguém se pergunta por que razão António José Seguro, um homem pessoalmente amável, mas que nunca marcou a vida pública nacional com um único traço visível da sua existência política, pode ganhar um partido com a importância, a história e o peso na vida pública nacional, como o PS? A resposta é: "Ele é o homem do aparelho". Seguro não existe fora das federações e secções do PS, das mil e uma personagens cinzentas que estão sempre lá, no grupo parlamentar nos lugares anódinos, de eleição para eleição, do senhor A que controla a emigração, do senhor B que tem os votos dos socialistas de Viseu, etc., etc. Que fora do PS seja uma inexistência, isso não impede, no sistema político português, que António José Seguro esteja a caminhar para primeiro-ministro. Os amadores da anormalidade terão, por isso, num debate parlamentar entre António José Seguro e Pedro Passos Coelho o retrato da mais absoluta normalidade, mesmo que durmam em pé. E, no entanto, há algo de terrivelmente errado nisto tudo.

Outra manifestação cheia de significado simbólico dos tempos de hoje é o retorno ao agro. Escrevo ontem para quem me lê hoje. Mas não tenho dúvidas que amanhã, num golpe publicitário genial do Continente, milhares e milhares de pessoas invadirão Lisboa, mais vários rebanhos de ovelhas, varas de porcos, manadas de vacas, cortiços de abelhas, capoeiras de galinhas, patos, perdizes e pintos, searas de trigo, campos de milho, pomares de maçãs, pêras, alperces, kiwis, hortas com exércitos de couves, pepinos, batatas, rabanetes, tomates, alcachofras, couves-flores, brócolos, alfaces, abóboras, primícias diversas, chegarão à Avenida da Liberdade e ao Parque Eduardo VII, em boa ordem em camiões, contentores, empilhadoras, tudo às centenas e aos milhares. E só não virão os sobreiros, carvalhos, oliveiras (talvez haja "oliveiras da CEE", mais pequenas), porque são grandes de mais, mas talvez haja castanhas, cortiça ou azeitonas.

E virá povo, muito povo, por causa do Tony Carreira, mas também porque muita gente da cidade nunca viu um pinto, e suspeita vagamente de que os ovos são feitos à máquina, e todos têm uma memória difusa do campo, uns da agricultura em que os seus avós ainda faziam, outros da "ingrícola" com que gozavam no café do bairro no meio da cerveja e dos tremoços. E de onde virão os tremoços? E passearão no meio das vagens por muitas razões, curiosidade, pelo espectáculo de tanta horta, nostalgia de um mundo que acabou, e uma réstia difusa de esperança de que pode não haver euro, nem dinheiro para os salários, mas sempre se pode sobreviver com as couves da velha tia que é viúva e ficou numa aldeia remota que só se visita de vez em quando. E virão também porque a agricultura conhece uma moda ilusória, uma fuga em frente típica da nossa miséria actual, em que à míngua de fábricas e minas, sempre acreditamos que temos terra para amanhar como último recurso. Não há quem a amanhe, a não ser bandos de moldavos, mas isso é outra coisa. E não há agricultura que sobreviva a não ser a industrializada, fortemente subsidiada, e a comercializada, que exige know-how, transportes, prazos e frigoríficos. E o Continente...

Sinais bizarros, como são os sinais típicos da novidade. Estranhezas. O mundo DC será assim, com o enorme peso da inércia do mundo AC e com as condições presentes, mas ainda fantasmáticas, do mundo DC. O Controlador, que deve estar a chegar à Portela um destes dias, vai começar a varrer o nevoeiro fantasmático, e então espero que tenham levado muitas batatas, hambúrgueres e feijão para casa. Vão ser precisos, porque vamos viver em "tempos interessantes".

(Versão do Público de 18 de Junho de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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