ABRUPTO

27.6.11


NOBRE, OS ACAMPADOS E A "DEMOCRACIA VERDADEIRA, JÁ!"


O comentário político está tão subserviente e balofo, salvo honrosas excepções, que funciona por simples moldes virais, mais ou menos formatados, entre a adesão ao poder sem disfarces, a propaganda pura e o wishfull thinking. Enquanto na era Sócrates esses moldes virais, frases, pseudo-argumentos, contra-argumentos, eram preparados profissionalmente, agora ainda dependem muito do entusiasmo entre o ingénuo e o servil que por aí anda entre blogues, jornais e televisões. Com o tempo, virá a profissionalização e também teremos a nossa nova câmara corporativa governamental para que não faltam voluntários. Não admira que haja quem queira sanear os comentários que não alinham com o modo dominante, uma pulsão que eu conheço muito bem e já de há muitos anos. Acentuou-se muito com o governo Santana Lopes, onde atingiu Marcelo Rebelo de Sousa, ganhou foros de obsessão com Sócrates que não se coibiu de roçar a ilegalidade para garantir o saneamento dos jornalistas considerados hostis e agora move a patrulha de amigos de Miguel Relvas, de quem ele foi e é fonte e patrocinador. É, aliás, muito pedagógico ver o movimento de jornalistas para os gabinetes governamentais, uma transumância que devia ter tanta transparência e exposição pública como a de ministros e secretários de Estado. Mas este escrutínio, de um modo geral, a comunicação social hesita em fazer.


Vejamos o "caso Nobre". Declaro desde já que não penso que este episódio deixe marcas na governação e que a sua conclusão seja uma "derrota" de Passos Coelho. Os problemas que o Governo vai afrontar são de tal monta que o "caso Nobre" é um epifenómeno que será rapidamente esquecido. Quanto ao facto de ele ser revelador da fragilidade da coligação, também não penso que acrescente alguma coisa ao que já era mais que visível se se estivesse atento: a coligação assenta numa desconfiança entre PSD e CDS e entre Portas e Passos Coelho muito maior do que a anterior coligação de 2002-2004. Na coligação de 2002, ambos os partidos tinham sido inimigos em campanha de forma clara e frontal, e, como muitas vezes acontece, é mais fácil entender-se entre inimigos do que entre semiamigos, que é o terreno da coligação de 2011. Há por isso um ambiente de competição mais acentuado e mais complicado do que em 2002, mas daí não se pode inferir que a coligação falhe. Há enormes pressões exógenas para um bom comportamento governamental que pode dar origem a uma coligação que resulte. Vamos ver.

Quanto a Nobre, vejamos a razão por que me parece de um simplismo atroz a discussão de chavões que por aí anda, que se centra no molde viral de que Nobre é um cavaleiro da "independência" e a sua derrota na Assembleia significa uma vitória do "aparelhismo partidário" contra uma pessoa que vem de fora para mudar de alto a baixo o sistema político e reformar a Assembleia. Passos Coelho seria o campeão desta entrada dos "independentes" na vida política e cumpriu a sua palavra ao insistir na apresentação falhada de Nobre no Parlamento. Este é o tipo de "argumentos" que para aí circulam, que têm a natureza de serem facilmente reversíveis: por exemplo, pode-se dizer que Passos Coelho queria de Nobre apenas os votos e que a história da "independência" também é jogar com os ventos dominantes para efeitos eleitorais. Experimentem perguntar a Passos Coelho se ele é a favor de listas "independentes" para as eleições legislativas quebrando o monopólio partidário. E podia dizer-se que se Passos Coelho merece elogios por cumprir a sua palavra, Nobre quebrou a sua mantendo-se no Parlamento. Etc., etc.

A minha opinião sobre Nobre é de há muito negativa e nunca o escondi. Cito-me, por excepção, para que as palavras tenham data e não possam ser inquinadas pelo que aconteceu a seguir. Escrevi durante a campanha para as presidenciais o seguinte (e cito apenas uma muito pequena parte, o resto ainda é pior):
"Nobre tem a pior das posturas, pessoal e nos debates, uma mistura de vaidade e aproveitamento biográfico sem pudor, populismo e ignorância. Nobre acha que são virtudes, porque ele é o único que não veio da política, mas são política do pior."

A sua campanha foi de uma vacuidade impressionante, nada tinha a dizer ao país e o que lhe dizia era puro populismo grosseiro, contra os partidos e a "política" (que é sempre a política da democracia). Teve quinhentos mil votos nas presidenciais, com a mesma natureza conjuntural do milhão em Manuel Alegre. Nem vale a pena estar aqui a perder tempo a explicar qual foi a conjuntura, que todos percebem o papel que a candidatura teve nas divisões internas ao PS, para além do óbvio facto de hoje o populismo dar votos.

Por isso a minha objecção contra Nobre tem pouco a ver com as dicotomias "independente" versus "partidocracia", de "fora da política" contra "classe política", "cidadão impoluto" contra a "corrupção parlamentar". Não tinha a ver com o facto de Nobre não ser filiado em nenhum partido, mas sim com as ideias que traduziam a sua "independência" e que são, a meu ver, pura e simplesmente antidemocráticas. Esta é a razão principal pela qual o PSD nunca o devia ter convidado para as suas listas.

Aliás, significativo do actual "situacionismo" é que ninguém faz a comparação óbvia entre as ideias de Nobre e outros movimentos que também as professam, como sejam os participantes das acampadas de Lisboa, Coimbra e Porto e mentores das manifestações do "democracia verdadeira já!". O que estes defendem é a substituição da democracia parlamentar por uma espécie de democracia directa, em que as decisões passem a ser tomadas em "assembleias" e referendos, sem necessidade de existirem partidos políticos nem eleições. É isso que eles têm tentado levar à prática, embora de uma forma tão grotescamente ridícula que desvia a atenção apenas para a parafernália mais ou menos sórdida dos acampamentos e as manifestações folclóricas, com desatenção para as ideias que estão por trás. As ideias têm muito maior expressão do que as poucas centenas de pessoas que têm aparecido nos eventos e tenho poucas dúvidas que se a comunicação social lhes desse alguma da simpatia e proselitismo que deu à manifestação da "geração à rasca", as manifestações teriam um grande sucesso.


O que os "acampados" têm feito é uma paródia da democracia directa que tomam a sério como sendo a "democracia verdadeira". Os cartazes das manifestações podem ser sintetizados num único: "O povo unido não precisa de partidos". O "povo unido" são eles, uma entidade orgânica que expele do seu seio, os "políticos", o antipovo. Juntos em assembleia "popular", "o povo unido" não precisa de deputados, nem de partidos, nem em bom rigor de eleições como as da "democracia falsa" que para aí existe. O sistema político parlamentar é apresentado num panfleto como sendo um "sistema político de falsa democracia".

Como se trata de um movimento de intelectuais acentua-se que a alternativa está "num debate intelectualmente sério sobre o assunto", sem "aproveitamentos partidários", mas a verdade é que a coreografia do movimento é a de dar à "democracia verdadeira já!" o modelo da democracia directa. Como na linguagem do engsoc orwelliano, os ajuntamentos de dezenas de pessoas, que são a representação mimética da Assembleia da República, chamam-se "assembleias populares", porque o "povo" está ali "verdadeiramente" representado. E os "amigos" no Facebook e os "gosto" ou "não gosto" da Internet são as "verdadeiras" eleições.

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Num boletim de voto de um "referendo" realizado numa das "acampadas" perguntava-se: "Sente-se representado no actual sistema democrático?". Uma centena de pessoas decide pelo país que "não", porque, como se teoriza num panfleto sobre a "natureza da Assembleia", deve ser "ela a dominar a estrutura e não a estrutura que domine a Assembleia". Por aí adiante. Era ali que Nobre deveria estar, entre os manifestantes da acampada e os seus contrapartes mais à direita do grupo, "um milhão de pessoas na avenida para demitir a classe política".

Estas ideias não só novas, são aliás velhíssimas. Esta mistura de basismo, de recusa da representação, de redução do direito de decidir apenas aos activistas, mergulha em determinadas formas de anarquismo, mas também de certas tradições conselhistas e obreiristas que acompanharam as dissidências do comunismo. E hoje comunicam com o populismo dos saudosistas de Salazar e dos remailers que activamente na Internet contam a história do general de Singapura que faz um golpe de Estado, manda fuzilar os políticos corruptos e depois faz eleições e tem 100% dos votos. Democracia verdadeira já!

As ideias de Nobre são uma variante elitista deste tipo de concepções. A suprema ironia é de que um homem com estas ideias quisesse ser presidente do órgão por excelência que, ao existir, as nega em democracia.

(Versão do Público de 25 de Junho de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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