ABRUPTO

10.6.11


AS MINHAS "NOVAS OPORTUNIDADES"


As minhas "Novas Oportunidades" começaram com o iPad. Podia ter sido apenas com o computador, podia ter sido com o iPhone, mas foi com o iPad e, quando vivemos rodeados de gadgets (desde o relógio, um gadget antigo, ao telemóvel), isso significa uma considerável melhoria da nossa capacidade de estendermos o corpo e a mente, que é para isso que servem os gadgets no Homo sapiens sapiens. Nas outras variantes de Homo, já não digo nada.

As coisas que já fazia com o iPad mais que justificam a máquina. Uso aplicações lúdicas: ver que aviões passam por Portugal em tempo real, as águas do Yukon a correrem no Alasca, ouvir uma estação de rádio de Islamabad e por aí adiante. Brinquedos, mas que trazem muito "mundo" para as minhas mãos. Uso aquilo que se podem chamar "aplicações de curiosidade" e leitura, como seja ouvir a recitação do Corão, ao mesmo tempo que corre o texto em árabe, ou consultar a Vulgata, Shakespeare completo ou aquela "biblioteca" que os franceses encomendaram a Jean d'Ormesson para que não sejam os anglófonos apenas a ter livros no iPad, e que começa com um dos mais belos títulos da literatura, A L'Ombre des Jeunes Filles en Fleurs. E uso as que me são úteis: meteorologia, mapas de cidades interactivos, saber que livrarias há à minha volta e armazenar via código de barras os títulos de livros que quero comprar, ver televisão, etc.

Mas, as minhas "Novas Oportunidades" são as aulas que estão no UTunes e que podem ser descarregadas gratuitamente para o iPad e ser vistas em qualquer altura. É verdade que muitas delas podem ser descarregadas para computador ou vistas no YouTube, mas, como diz o anúncio, poder podia, mas não é a mesma coisa. Aqui é que a portabilidade quase total do iPad, o tamanho do ecrã muito mais adaptado à dimensão do nosso olhar do que o dos telefones, mesmo do iPhone, a qualidade gráfica, tudo representa uma nova dimensão de "ver" que é um ponto sem retorno.

Mas o gadget não faz o conteúdo e é obviamente o conteúdo que sobressai, quando podemos ver a qualquer altura, num comboio, num avião, enquanto se espera, de pé ou sentado, na cama, alguns dos melhores professores do mundo a darem as suas aulas normais, sem encenação - entram e saem alunos diante das câmaras, existem anúncios de testes e exames, "a próxima aula é na quinta e não na segunda-feira", etc. -, as mesmas aulas a que até agora apenas os mais privilegiados podiam assistir em Yale, Oxford, Stanford e dezenas de outras universidades. Cito estas três, porque são aquelas que mais tenho seguido, com relevo para Yale, cujo conjunto de aulas disponíveis é de excepcional qualidade. Repito: excepcional qualidade, um prazer para aprender, umas "novas oportunidades" que quem pode aceder a estas tecnologias (que bem sei que são caras) tem de graça com um ou dois cliques.

Oussama Kathib
Fiquei "preso" no UTunes como a uma droga, quando escolhi como primeira série de aulas o curso de Introdução à Robótica dado pelo professor Oussama Kathib  e de que nunca tinha ouvido falar. A minha ideia original era começar com cursos na área de ciências, para tentar aprender alguma coisa de forma estruturada sobre disciplinas que nunca tive. As primeiras aulas que importei foram de robótica, mecânica quântica e biologia molecular. E comecei pela robótica, para encontrar logo à cabeça um daqueles professores cuja empatia por ensinar irradia por todo o lado, falando inglês com sotaque árabe, literalmente dançando no estrado para reproduzir os movimentos que precisavam de ser programados em robots, mesmo os mais simples, o que torna o assistir às suas aulas um enorme prazer. Não vi até hoje a não ser a introdução das aulas de Mecânica Quântica (Oxford) e de Química Orgânica (Yale), e no caso da primeira encontrei a dificuldade que mais afecta os formados nas "humanidades", a matemática. Fico furioso comigo mesmo, mas não há volta a dar. Dito isto, nunca pensei em desistir de ver as aulas, porque, mesmo não sabendo a matemática, estes professores são tão bons que se percebe pelo menos para que servem as fórmulas e que papel têm, por exemplo, no cálculo dos "graus de liberdade" de um robot ou na dimensão probabilística da mecânica quântica.
Giuseppe Mazzotta
Andava eu pelas ciências, mais que satisfeito pelos meus professores, quando caí na asneira de, por curiosidade, ir ver o curso intitulado "Dante in Translation" com o professor Giuseppe Mazzotta . Outra vez um excelente professor, agora com um sotaque italiano, um dos mais distintos académicos em Dante, com vários livros publicados, a falar com uma paixão sem limites sobre o "seu" autor. Como todas as aulas que aqui refiro, trata-se de aulas magistrais, compostas por uma longa exposição inicial do professor e, quando muito, cinco minutos de perguntas no final da aula. Nestes cursos, optativos e semestrais, percebe-se que as salas estão cheias e que há muitos alunos que nem sequer estão a fazer aquele curso, mas assistem às aulas por curiosidade e gosto. E uma das melhores aulas a que jamais assisti foi a de Mazzotta sobre a Vita Nuova de Dante, nem uma palavra a mais, nem uma palavra a menos, puro saber e gosto pelo texto, pelo autor, o prazer estético e intelectual em acto.
Roberto González Echevarria

A asneira foi que agora o número de aulas que sigo aumentou exponencialmente e vejo, sempre que posso, os cursos de Yale de Literatura, entremeados com os de Ciência, e alguns a meio caminho, como é o caso de outro professor excepcional, Benjamim Polak, e do curso sobre "teoria dos jogos", . E destaco dois cursos semestrais igualmente excepcionais, a começar pelo curso sobre o Quijote dado pelo professor cubano Roberto González Echevarria , que começa as aulas dizendo aos seus alunos: "O livro que vão ler vai mudar a vossa vida." Muda, claro.
Dale Martin
O outro, aquele que actualmente estou a ver, é o curso sobre o Novo Testamento dado pelo professor Dale Martin  e, de novo, só posso falar com todo entusiasmo sobre as suas aulas. Neste caso temos um cínico, divertido, com uma obra académica sobre cristianismo primitivo, com uma ênfase particular em estudos sobre a sexualidade, um dos quais com este bizarro título e ainda mais bizarro assunto: Contradictions of Masculinity: Ascetic Inseminators and Menstruating Men in Greco-Roman Culture. Dale Martin começa também as suas aulas confrontando os seus alunos com a razão por que escolheram o curso sobre o Novo Testamento e com o facto de ele ir tratar o Novo Testamento como sendo um texto e não uma "escritura", mesmo sabendo que muitos alunos vêm das Sunday schools religiosas e isso vê-se na facilidade com que identificam as citações da Bíblia, capítulo e versículo. Só para colocar os seus estudantes das Sunday schools na ordem, começa por explicar que o Novo Testamento é como uma novela greco-latina, mas sem sexo.

Como acontece com os cursos de Echevarria sobre Cervantes e de Mazzotta sobre Dante, o alcance das aulas cobre muito mais do que o seu assunto principal, varrendo um universo de referências e contexto que nos faz aprender. É que é mesmo assim, aprender, com alguns dos melhores professores do mundo, nalgumas das melhores universidades do mundo. Na sua mão, no iPad. Para quem puder, aqui estão umas genuínas "novas oportunidades".

(Versão de Público, 4 de Junho de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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