ABRUPTO

9.5.11


UM DIA ESTRANHO


Este é um dia estranho. Mais estranho ainda porque a sua estranheza passa despercebida a muita gente. Estamos como que anestesiados, passados, adormecidos, atordoados, escolham o termo. No dia em que escrevo, passaram 24 horas sobre saber-se quem governa Portugal nos próximos três anos. E não somos nós, nem quem escolhemos, nem quem vamos escolher. São "eles", um deles de olhos azuis, como diz a comunicação social com o seu gosto pela trivialidade, direitinhos, capazes, sóbrios, eficazes, "eles". Isto é natural? Não é. Pode ser inevitável, mas natural não é. E também não é natural que achemos com tanta facilidade que o é.

Os nossos novos governantes, altos burocratas internacionais, alguns nem tão altos assim, dedicaram um dia a fazer conferências de imprensa e a dar entrevistas. Ninguém acha mal, estranho, bizarro, que burocratas, funcionários, sem qualquer legitimidade democrática, apareçam a dizer o que devemos fazer e a comentar com displicência o que fizemos ou não fizemos. Os patrões deles nem sequer se dignaram aparecer. Tinha sido melhor. A senhora Merkel sempre foi eleita pelos alemães, aqueles ministros franceses, holandeses, finlandeses, sempre têm que ir a votos explicar o que fazem aos seus povos, e como estão a gastar o dinheiro dos seus impostos, e por isso podem dar-nos lições e ralhetes. Seria melhor, mas nem isso já merecemos, porque achamos bem que o funcionalismo europeu, os burocratas de Bruxelas, dêem conferências de imprensa muito para além do seu mandato e do seu poder. Ah! o estado de necessidade faz engolir a vergonha!

Como tudo hoje se mede pela eficácia eleitoral, os ouvidos portugueses que ouviram a troika, - agora toda a agente fala em troika com aquele mimetismo imbecil da derrocada da imaginação -, mediram cada palavra pela bitola eleitoral: esta afirmação serve a oposição e o PSD, esta serve o Governo e o PS. Na arregimentação extrema que se passa hoje nas hostes nacionais, a conferência de imprensa fica legitimada pelos ganhos eleitorais que se pode tirar das palavras dos funcionários e ninguém sequer se sentiu minimamente insultado e humilhado por ver três burocratas a falarem com notório desprezo sobre o país. O pior da racionalização para esta indiferença, e até para o gosto perverso na humilhação, é que "é bem feito", como se o "é bem feito" fosse apenas para Sócrates, Teixeira dos Santos e os seus partidários. Não é, é para todos os portugueses.

Neste mesmo dia estranho está a decorrer uma greve da função pública tão absurda que nem os sindicatos parecem esforçar-se para a apresentar como uma vitória, que está longe de ser. Mesmo que eu faça um gigantesco esforço para perceber o que leva, nesta conjuntura de cansaço social, a convocar uma greve em pleno refluxo das reivindicações, não consigo percebê-lo. O 25 de Abril teve muita gente, o 1.º de Maio também, a presença de muitos milhares de pessoas nas manifestações mostra que há um descontentamento activo e politizado principalmente na esquerda comunista e sindical. Mas manifestações e greves não são a mesma coisa, e comunicam pouco nesta altura de depressão social. Isto pode vir a mudar, com mais raiva e radicalismo, e tal vai certamente acontecer, mas não é já, não é hoje.

Hoje, volto ao princípio, estamos anestesiados, passados, adormecidos, atordoados e a ideia peregrina de que mesmo esta esquerda se mobiliza contra o "inimigo externo" e que este é o FMI não cola. O "inimigo interno" mobiliza, o "inimigo externo" parece abstracto, até útil. Para muita desta esquerda a inevitabilidade de vir a entrar dinheiro alheio está interiorizada, o que não está é pagá-lo se isso significar, como significa, ir-lhe ao bolso. Por isso, daqui a uns meses, quando começarem as avaliações externas e houver um Governo mais claramente do "inimigo externo", então sim, as greves terão outra força.

Não é a reivindicação que marca este dia estranho, é a perda. Mil pessoas passam por mim na rua, mil pequenas derrotas pessoais, mil coisas perdidas que todos pensavam poder fazer, mil pequenos contratos que cada um pensava ter com o Estado, com o patrão, com a família, consigo próprio, perdidos. Descontei toda a vida à espera de ter mil euros de reforma e agora tiram-ma. Pensava ter esta reforma e já não a vou ter. Não vai dar, a minha filha vai ter que me ajudar. Mas como é que o pode fazer, agora que o marido a deixou e o infantário é mais caro? Pensava ganhar seiscentos e afinal vou ganhar apenas quatrocentos. Onde é que vou cortar? Como é possível que este remédio que tenho que tomar todos os dias custe agora mais dez euros? Será que posso tomá-lo apenas dia sim, dia não? Fará o mesmo efeito? É melhor não comprar esta carne, mas sim o frango, para poupar oito euros. Tenho que começar outra vez a pensar em escudos, oito euros é um conto e seiscentos. Como é possível esta carne custar tanto? Vou dizer à minha mulher que é melhor só ir uma semana de férias, vai ficar furiosa e dizer que as crianças precisam de sol, de iodo e ela chega a Agosto tão cansada. Mas não pode ser. Não gostei de ver a cara do patrão hoje. Já não vejo o patrão há um mês, o que é que estará a acontecer? O Alberto disse-me que há um problema com os fornecedores. Onde é que eu vou buscar seiscentos euros para o condomínio arranjar o elevador? Como é que vou todos os dias subir quatro andares? Já me faltam só três meses para acabar o subsídio de desemprego, não sei como vai ser. O comboio subiu, o autocarro subiu, o barco do Barreiro subiu. Já viste esta factura da electricidade? Como é possível? O rapaz pediu-me dinheiro para sair à noite. Pediu-me ontem, pede-me hoje. Dei-lhe dez euros, queria vinte. Não pode ser. Como é que vou pagar a prestação da casa? Este mês são mais cinquenta euros. A Carris acabou com a linha do autocarro, como é que eu chego ao emprego? A Maria contou-me que já não suporta ter que estar na mesma casa com o João, mas ele não tem para onde ir. O meu "ex" deixou de pagar para os filhos, a minha prima não paga o que me deve e o meu marido está furioso porque bem me disse para não emprestar nada. Como é que vou pagar esta contribuição, já viste o que subiu? E agora querem penhorar-me a casa. Se me tiram a casa, para onde é que eu vou? Fiz aquele trabalho de electricidade para a Módulo - Informática e eles não me pagam, a loja está fechada e pela montra vê-se o correio no chão, é só cartas das Finanças. E agora que já paguei o material, como é que vai ser? Vou "arder" em mil euros? Etc., etc., etc.

É assim. Depois olha-se para os jornais e as sondagens funcionam como um indicador de inevitabilidade, mostrando o mesmo absurdo que é quanto mais se precisa de mudar, não há forças para a mudança, o conservadorismo da indiferença impera. Está tudo tão mal que mais vale manter-se tudo como está. Onde não há esperança, não há mudança.

(Versão do Público de 7 de Maio de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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