ABRUPTO

2.5.11


O DEMÓNIO QUE NÓS CONHECEMOS 


Vindo do pó, das cinzas e do nada, como os vampiros da Transilvânia, redivivo por uma gota de sangue qualquer, o nosso particular demónio acordou com toda a fúria de um longo sofrimento e de um combate contra um mundo cruel que o aprisionou a uma crise que parecia tê-lo consumido de vez. Não consumiu: muitos telemóveis atirados contra a parede, muitos "mansa é a tua tia" bem mais vernáculos, muita fúria e gritos e ordens para a sua Casa de Demónios aprendizes, vulgo gabinete, eis que José Sócrates, o artista consumado de todo o jogo que envolva engano, ilusão, dolo, um homem muito perigoso para Portugal, ameaça não ter esgotado a sua capacidade de fazer mal ao país. Ele tem a força da convicção dos grandes ludibriadores, que vem da completa incapacidade de distinguir entre a verdade e a mentira, e de exercer essa arte de uma forma tão consumada que, mais do que convencer os outros, corrompe a vontade de lhe resistir ao engano. Quando este sistema de auto convencimento psicológico falha, Sócrates hesita de uma forma tão reveladora, tão ingénua, tão frágil, que se percebe que, como nos diques, uma pequena fractura revela o mar todo atrás. Mas ele coloca logo mil minúsculos dedos na fenda. Foi o que aconteceu na entrevista dos pavões, quando falou de Teixeira dos Santos, e hesitou porque temeu que a sua mentira pudesse ser contrariada pelo seu ex-ministro das Finanças. Aqui está ele a comandar o jogo, o jogo em que se tornou a virtualidade da política na nossa democracia.

Não é o primeiro desta espécie que conheço dentro dos partidos - que parecem atrair, dar palco e gostar deste tipo de personagens -, mas, na esfera pública, é talvez o caso mais exemplar desde o 25 de Abril e aquele em que o exercício do poder implica mais riscos e mais custos para Portugal. O problema com este tipo de pessoas é que o seu comportamento idiossincrático, quando associado a muito poder, e movendo-se com todo o à-vontade no palco mediático, que é o terreno ideal destas personagens, revela-se perigoso para o funcionamento normal da democracia. Sob as ordens deste homem, o país gastou dezenas de milhares de milhões de euros em programas sem preparação, escrutínio e escassos resultados em termos de custo-benefício (o Magalhães, as Novas Oportunidades, os aeroportos e TGV em estudo, etc., etc,), chegou à crise financeira mundial com uma dívida abissal, desemprego a crescer, projectos megalómanos, e uma condução política assente na arrogância e na teimosia que nos levou ao descalabro que nos fez perder os últimos restos de uma escassa soberania, e nos deixou a estender a mão como pedintes. Nunca foi um problema de optimismo versus pessimismo, nem de "puxar o país para a frente", enquanto outros o queriam "puxar para trás". Não. Foi um problema de pura vontade e determinação no erro, que levou tudo atrás para não afectar a imagem messiânica que José Sócrates tem de si próprio e que pagamos demasiado caro todas as vezes que ele pensa que a teimosia no erro apaga o erro.

Metade dos portugueses odeia este homem. A palavra é deliberadamente escolhida, porque caracteriza a intensidade da sua rejeição por bons e maus motivos, porque não há apenas os bons motivos, mas também algum corporativismo à mistura, como se passa com os professores, os únicos que o venceram até agora. A outra metade dos portugueses não o ama, com a intensidade inversa do ódio que lhe é dedicado, mas teme-o, prefere-o, porque mais vale o Diabo conhecido ao Anjo virtual, e apenas uma pequena minoria responde ao ódio com amor e entusiasmo. Sócrates não é um populista que atraia pelas benesses, mas um exímio manipulador das massas que controla pelo medo, pelos medos e pela enorme força e eficácia da sua presença mediática, pelo domínio do jogo a que há muito a mediatização reduziu a democracia. É ele que joga, que faz as regras e que decide quem ganha e como ganha e, como faz tudo que lhe é permitido, e muito lhe foi e é permitido, varre tudo à frente.

Do lado do PSD havia neste contexto um programa simples e eficaz, porque correspondia à grande força que atravessa o país, a única que até agora tem tido tradução política, difusa nos seus instrumentos, mas concentrada na sua explicitude: vamos tirar Sócrates do poder. Ponto. Claro que os puristas podem-se arrepiar com esta crueza, mas esta crueza tem o mérito de ser realista e não é desprovida de méritos políticos, se for associada a uma compreensão de por que é que é assim. E, por favor, poupem-me aos simplismo de que isto é fazer campanha ad hominem, e as proclamações morais de que o que deve haver é um choque programático e ideológico, numa campanha civilizada e bem-educada. Sócrates vai mesmo ser um primor de educação e o FMI vai mesmo deixar haver um grande choque programático entre liberais e estatistas...

Não há um problema pessoal com um homem, há um problema político com um homem, José Sócrates. Não é com o PS, transformado em marioneta, nem com o Governo, inexistente, é com José Sócrates, político. Os puristas podem dizer que este é um terreno perigoso em democracia, a pessoalização das críticas, e repetir a lenda urbana construída pelo próprio Sócrates com a colaboração de Passos Coelho e dos seus amigos, quando estavam a combater Manuela Ferreira Leite, que atribuía as razões do seu falhanço eleitoral aos "ataques pessoais a Sócrates". Tretas! O problema existe mesmo e queiram os autores da lenda no PSD ou não queiram, é exactamente a idiossincrasia do "homem" o que lhes perturba a possibilidade de terem sucesso com todas as vantagens a empurrar a seu favor. Ou será que dizer que "nunca mais podia haver reuniões a dois" e repetir hoje todos os dias que Sócrates mente, como fazem hoje os porta-vozes do PSD, não é reconhecer mesmo contra a vontade que há ali um problema que não é redutível apenas às políticas? Isso os portugueses já perceberam.

A razão por que temos hoje um problema com um homem que é um consumado e eficaz actor mediático, logo capaz de manipular vontades mesmo contra todas as evidências, remete para um problema estrutural das democracias e não para um problema de carácter subjectivo. É que o sistema espectacular dos media favorece, mais do que isso, incentiva, alimenta, estimula, faz crescer, dá poder a todos os que são eficazes dentro dele, das suas regras, dos seus produtos. Sócrates é o mais "moderno" político português e para isso não precisa de escrever na sua página do Facebook, porque a modernidade do país ainda está na televisão, onde ele próprio e as suas encenações são altamente eficazes. Eu não estou a dizer que Sócrates seja um produto da televisão, embora também seja, mas que as suas qualidades pessoais, e o modo profissional como utiliza os media, lhe permitem uma enorme vantagem sobre os seus adversários, mesmo no pior dos contextos. E que isto é um problema cada vez maior nas democracias, muito maior e mais grave em quem pensa que pode jogar o mesmo jogo empregando agências de comunicação, especialistas de marketing brasileiro, assessores de imprensa, de imagem, etc., etc. Sócrates tem isto tudo, mas tem algo mais: é melhor a jogar este jogo, muito melhor.

Há fragilidades, muitas fragilidades na personagem. Mas só se descobrem quando se percebe o que fez reviver de novo e isso foi o facto de ter sido ele mesmo a "romper", ele mesmo a "arriscar", ele mesmo a jogar tudo por tudo. Ele não andou a falar de "rupturas", mas "rompeu", precipitou a queda do seu Governo, provocou eleições e arrisca-se a tudo. Claro que não quis saber do país para nada, foi e é indiferente às consequências para Portugal da sua jonglerie, mas sabia que, ao fazê-lo, retomava a iniciativa, escolhia o terreno e varria tudo à frente. Então o problema não é o "homem"?

(Versão do Público de 30 de Abril de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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