ABRUPTO

25.4.11


O CÃO E O CORÃO



Comecemos por uma história séria, para depois, ao entrarmos em Portugal, ficarmos apenas com uma fábula de mau proveito e exemplo. A história séria foi-me contada pelo comandante operacional das forças armadas holandesas estacionadas em Uruzgan no Afeganistão. Para exemplificar as dificuldades que os jovens comandantes de pelotão encontram no terreno afegão, relatou um caso ocorrido com uma unidade sob o seu comando. Actuando na base de uma informação de que haveria numa determinada aldeia um fabricante de engenhos explosivos artesanais (na língua de pau dos militares um IED, "improvised explosive device", o assassino número um de militares e civis), o pelotão iniciou uma busca com cães para farejar explosivos. Sem se aperceberem, começou a correr um rumor na aldeia de que um cão tinha tocado num Corão, o que podia ou não ser verdade. Imediatamente, pressentindo a hostilidade crescente, a força começou a preparar-se para o pior, que do emaranhado de casas pudesse emergir um aldeão ligado aos taliban, de AK47 em punho, a disparar para todo o lado e a gritar "Allahu akbar". Em breve, o comandante, que não sabia o que se estava a passar, recebeu um contacto rádio da cadeia de comando a perguntar-lhe o que acontecera, visto que o próprio presidente Karzai estava muito preocupado com a possibilidade de as tropas terem mostrado desrespeito pelo livro sagrado dos muçulmanos. Em menos de meia hora, o cão que teria tocado no Corão era uma questão nacional, ameaçando a integridade física das tropas da NATO no terreno. O comandante, com receio de piores consequências, não teve outro remédio senão retirar, sabendo que teria muitas explicações para dar, de um acto involuntário de um animal, ele próprio soldado, uma canine unit, sendo que nem sequer havia a certeza de que tal tinha ocorrido.

Esta história, verdadeira, não é para brincadeiras, mas, ao ouvi-la, lembrei-me de que também por cá, num ambiente muito diferente, o radicalismo político faz as vezes do intenso fanatismo religioso, sem ter sequer a desculpa de tal ocorrer numa população que vive na pobreza mais abjecta, com um estado contínuo de guerra há dezenas de anos, analfabeta e que só conhece uma vida violenta e curta. Por cá, também um qualquer cão toca todos os dias no Corão, dando origem a uma selva de insultos, juras, fúrias, processos de intenção a propósito de... muito pouco ou nada. Nos blogues, na maioria dos blogues políticos, este é o estilo do dia: longas polémicas com fortes palavras sobre qualquer coisa que seja parecida com o focinho do cão a tocar num livro sagrado, prefigurando quase sempre o partido ou o lado em que está arregimentado o taliban de serviço. Os blogues são irrelevantes, quando colocados sobre o pano de fundo do país, que tem mais a ver com o Benfica, a CGTP, a CAP, ou o Correio da Manhã do que com a blogosfera, mas os blogues estão colocados num contínuo em que jornalistas, políticos, gente da publicidade, do marketing e das agências de comunicação interagem entre si. Comunicam opiniões, interesses e agendas, numa extensão nova do sistema político-partidário.

O estilo que é hoje dominante na chamada blogosfera política torna-a desprovida de qualquer espírito crítico e fá-la absorver, como um mata-borrão, os piores vícios das juventudes partidárias e da comunicação social, cada vez mais parecidas no recrutamento, formação e carreira. Tudo misturado com uma dose maciça de ignorância, demagogia e populismo. Como sempre há excepções e todos sabem quais são, mas a regra é esta.

Nesta equação, a ignorância e os péssimos hábitos intelectuais pesam mais, porque estes taliban valorizam muito pouco o rigor, o estudo, o pensar. A maioria das citações que circulam ou são manipuladas para ganharem "força", uma prática comum na comunicação social, ou são pura e simplesmente falsificadas para servirem o escândalo que se pretende. Quase tudo está fora do contexto e a ignorância sobre biografias, posições, história dos problemas, pura e simples memória, e muita asneira e erro grosseiro circulam sem verificação. Um estilo quase habitual de manipulação e exagero serve uma vida pública de meia bola e força. Vale tudo, porque para muitos autores de blogues políticos, existir é hoje arregimentar-se e "militar", no sentido original do termo. Hoje os establishments dos partidos têm forte representação nos blogues, quer do PS, quer do PSD. O PS beneficia dos meios da governação, o PSD do cheiro a poder. À osmose dos vícios partidários soma-se a facilidade com que se "bota" opinião, quase sempre marcada por um radicalismo cujo outro exemplo português comparável é o do clubismo adolescente das claques. Os blogues e as claques irmanam-se na mesma visão maniqueísta da realidade, em que tudo é ou "nós" ou eles". O pensamento crítico é varrido como sendo pusilâmine ou subserviente ao "sistema", que é sempre a forma como denominam a democracia, ou como uma "traição" aos regimentos em marcha possuídos de gritos "a Berlim" ou "a Paris". É tudo a preto e branco e pensam que, ao ser assim, actuam por princípios, quando na realidade actuam por indigência mental. E a ironia das coisas é que esta forma de actuar é particularmente ineficaz para os objectivos pretendidos.

O saber é sempre desvalorizado para que não se possam fazer comparações, e os julgamentos de carácter e os processos de intenção são o pão nosso do dia-a-dia. Um bom observador percebe que esses julgamentos de carácter são mais ilustrativos dos seus autores do que dos seus destinatários. São excelentes retratos dos próprios, feitos ao espelho nocturno da impaciência dos injustos. Não é preciso ser especialmente perspicaz, para perceber que, como nos partidos, já há gente a fazer pela vida nos blogues, com cálculo, "prestando serviços" e esperando a devida recompensa. E meia dúzia de gigantones de verbo insultuoso, pensamento curto e ânimo futebolístico lá transitam pela via da mediocridade reinante.

No fundo, tem sentido o que se está a passar, porque os espaços políticos, mediáticos e bloguísticos são cada vez mais miméticos. Enquanto em qualquer país saudável esta realidade devia ser tocada ao de longe com pinças, como sendo um "lugar mal frequentado", em Portugal, que não é um país saudável, mas um país muitíssimo doente, esta amálgama fornece um círculo de pequenas personalidades mediáticas recrutáveis para ajudantes dos ajudantes dos ajudantes, no curto tempo em que o seu fugaz verbo tem utilidade marginal. Depois, ou aprendem as artes da obediência partidária, fundamentais numa gestão de carreira, ou se gastam na sua aparente novidade, porque não têm de facto muito para dizer ao mundo e são expendables.

Na verdade, eles não trazem experiência, nem mais-valia, trazem a voz grossa e grosseira do gritador de claque que se exercita nos bancos de um estádio a chamar coisa obscenas ao outro clube, com as palmadas grosseiras de aprovação do resto da claque. O alimento desta turba, especialmente excitada em período eleitoral, são as múltiplas variantes do cão que toca no Corão. O resultado é uma vozearia em altíssima voz sobre trivialidades e incidentes, desprovida de qualquer hierarquia de importância ou sequer de sentido estratégico, que acaba por ter o resultado exactamente contrário às expectativas dos seus autores.

Um dos casos mais evidentes foi o radicalismo inconsciente de "correr o Sócrates o mais depressa possível", a que no PSD se deu ouvidos e cujo resultado ameaça ser mantê-lo no poder, contra todas as evidências, ou dar-lhe o melhor cenário possível para um retorno ao poder a curto prazo. E o melhor cenário possível, não custa perceber, é um PSD ganhador por uma pequena margem sobre um PS que sai do seu annus horribilis sem grandes estragos. Sócrates escapará ao pior da crise, a execução do plano de austeridade do FMI passará a responsabilidade do PSD, e este estará na primeira bancada da Assembleia a conduzir uma oposição revanchista e perigosa face a um PSD muito debilitado por uma vitória que será de Pirro.

Se o país já está muito mal, ficará então muito pior, porque a última coisa que é necessária e responsável na actual crise política é seguir o estilo radical, adolescente e futebolístico dos blogues. E então, mil e um cães tocarão em mil e um Corões, só que os cães são os gestos desordenados de um governo que já nem sabe para onde se virar, e os Corões aparecerão em mil mãos que dirão: "Estão a ver o que os ímpios e os blasfemos fazem?" A rua, que não contempla estas subtilezas, então mandará. E há uma diferença abissal entre as proclamações verbais e as pedras.

(Versão do Público de 23 de Abril de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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