ABRUPTO

8.3.11


UM JOGO DE MÚLTIPLOS TABULEIROS


Não vou ao ponto de dizer que as eleições presidenciais e a posse do novo Presidente "fecharam" um ciclo, porque isso implicaria que se "abriria" um novo e, se há coisa que de todo não temos, é nada de novo. Direi apenas que todos os actores de um jogo político que vai desenvolver-se nos próximos anos estão alinhados no tabuleiro. Esses actores são Cavaco Silva, José Sócrates, o PS, Passos Coelho, o PSD, Angela Merkel, o Conselho Europeu, os "mercados", e os manifestantes inorgânicos que virão à rua em Março. Depois há um outro conjunto de actores menores que incluem o CDS, o BE, o PCP e os sindicatos da CGTP. Por último, há outra série de actores que estão no tabuleiro da política e não deviam estar: magistrados do MP, juízes, jornalistas e patrões da comunicação social. Infelizmente os portugueses são pouco mais do que um pano de fundo, uma paisagem que assiste muitas vezes com pasmo, outras com revolta, aos movimentos de todas estas peças desirmanadas, cuja única coerência é moverem-se no território dessa antigo país chamado Portugal.

Todos estão envolvidos no jogo jogado num espaço muitas vezes parecido com aquele xadrez de ficção científica em que se joga em vários tabuleiros de três dimensões. O jogo é simples nos seus objectivos: quem tem poder, quem ganha poder, quem sobe e quem desce, quem come e quem é comido. Mas a simplicidade dos seus objectivos não significa que seja fácil de jogar, pelo contrário, é muito complexo e, num verdadeiro sentido, emaranhado nas três dimensões em que se realiza. É um jogo cruel para aqueles que são sujeitos dos seus resultados, mas pelo meio dos vários tabuleiros, tudo se faz: enganos, palhaçadas, teatro, murros na mesa, diktats, fúrias, e muita, muita coreografia. Não é um jogo antidemocrático, ainda, mas é um jogo em que a democracia está muito degradada.


Merkel, o Conselho Europeu e os "mercados" são as peças mais poderosas, podendo, como as rainhas no xadrez, movimentar-se em todas as direcções e definir as casas do tabuleiro que controlam e o movimento de outras peças. É um xadrez plástico, porque quem tem dinheiro e a chave do cofre decide o tamanho do tabuleiro e os movimentos permitidos das outras peças. Ou seja, manda no jogo e distribui os poderes entre si. Merkel manda no Conselho Europeu, e indirectamente no Banco Central Europeu e por isso as suas decisões afectam as dos "mercados". No seu conjunto, o directório de facto que existe na Europa determina as condições de liberdade e de sujeição do resto das peças do tabuleiro, a começar pelas portuguesas, cuja capacidade de movimentação é já hoje quase nenhuma.

No xadrez a três dimensões, todos jogam no tabuleiro de cima e obedecem a outros jogadores que não estão presentes: os eleitores alemães, os eleitores dos principais decisores europeus, França, Reino Unido, Holanda, em particular os chamados contribuintes líquidos da União. Através da rede complexa dos "mercados" inserem-se no sistema financeiro globalizado, onde actuam particulares e outros países como, por exemplo, a China. Portugal como grande devedor vale pouquíssimo nesse jogo, e se é ao mesmo tempo barato para ver os seus problemas "resolvidos", torna-se simbolicamente caro, por exemplo, para os eleitores alemães que não estão mais dispostos a ver o dinheiro dos seus impostos esbanjados em países que vivem acima das suas posses e à sua custa. Os argumentos "europeus", de que a Europa deve encontrar mecanismos para "salvar" a sua moeda "salvando" os países devedores, são cómodos para nós, mas pouco valem no actual estado de coisas da realpolitik europeia, ou seja, franco-alemã, ou seja, alemã. Como sugere a grande imprensa económica, que hoje fala de Portugal todos os dias, numa fama triste e perigosa, não se percebe por que razão Portugal não pode sair do euro durante dez anos e depois voltar, cumpridas certas condições. Ou seja, ninguém considera interesse vital da Europa que Portugal permaneça no tabuleiro do euro, ou a Grécia ou a Irlanda. Estamos neste jogo mais por consentimento alheio do que por direito próprio. Mas convém dizer que todas as regras principais que nos podem excluir foram por nós alegremente aprovadas nos últimos anos, quando embarcámos numa deriva europeia que começou na falhada Constituição e veio a dar ao Tratado de Lisboa. O efeito útil dessa deriva, feita em nome de um upgrade do poder político europeu, foi, como se disse em tempo, a emergência do directório europeu, que joga agora no tabuleiro superior.

Nos tabuleiros inferiores, Sócrates movimenta-se num espaço cada vez mais curto, encostado a uma parede do tabuleiro com cada vez menos casas à sua volta. É de sua natureza esbracejar, e o esbracejar dá uma ilusão de espaço que verdadeiramente não existe, mas não é líquido que, no seu desespero e vontade de sobrevivência, não possa executar algumas das provas que lhe são impostas pelo tabuleiro de cima. De qualquer modo, a responsabilidade principal pelo que se está a passar é sua e os procedimentos da democracia dão-lhe poderes que, até novas eleições, lhe pertencem.

O PSD oscila entre, nas segundas, quartas e sextas, querer "estabilidade" e mostrar-se responsável e cooperante na resolução dos problemas nacionais, e, nas terças, quintas e sábados, desejar a queda do Governo e eleições para o dia seguinte. O resultado desta oscilação é um efeito esquizofrénico, que gera raiva nos que querem lá chegar depressa, e a perplexidade dos que presumem que uma ruptura política do ciclo democrático nesta altura ainda agravará mais os nossos problemas e favorecerá o infractor, José Sócrates e o PS. Seja dito que Passos Coelho tem parecido estar mais do lado das segundas, quartas e sextas e perceber que é muito complicado acrescentar outro problema a um país que já os tem de sobejo e sem a garantia de que seja capaz de, por si só, os resolver.

As condicionantes que hoje existem para Sócrates serão as mesmas que terá Passos Coelho na governação, as mesmas ou piores. Basta pensar um pouco, exercício que não faz muita gente no PSD que acha que as portas dos ministérios estão escancaradas à sua frente a cada sondagem favorável e que não percebe por que é que não se entra já por aí dentro para ocupar os gabinetes e os carros do Estado e acrescentar um título pomposo aos cartões-de-visita novos em folha para distribuir na terra. Pensando-se, chega-se à conclusão de puro bom senso que, mesmo que haja algum estado de graça num novo Governo e alguma distensão sem Sócrates, e, na possibilidade de haver uma maioria absoluta de dois partidos, um passo muito positivo para a governação, tudo o resto que condiciona a governação hoje continuará na mesma. Em particular continua na mesma a necessidade de fortes programas de austeridade, com as consequentes efeitos de agitação e perturbação social, potenciados por uma esquerda ainda mais enraivecida e um PS ressabiado pela queda. Ou será que alguém pensa, no PSD, que se vai mentir nas eleições, prometendo qualquer "esperança" virtual no fim próximo do túnel? Pelo contrário, a única linguagem séria é falar verdade aos portugueses, essa palavrinha que tanto irritava Sócrates e os seus aliados no PSD contra Ferreira Leite.

A única alteração qualitativa neste cenário seria um acordo consistente, duradouro, firmemente ancorado no voto popular e parlamentar, que comprometesse PSD, PS e CDS, algo hoje muito improvável, mesmo na situação desesperada actual. Por isso, este vosso autor que sempre se opôs a qualquer variante de "bloco central" (e que obviamente entende que não é isso que está a propor), tem poucas dúvidas de que, sem um entendimento desta natureza de boa-fé e sólido que compreenda questões constitucionais, de governação, de reorganização administrativa do país, de mudanças profundas na justiça, na legislação do trabalho, na fiscalidade e nos impostos, ou seja, em quase tudo o que pode ser bloqueado ou pelo PS ou pelo PSD na oposição, não vamos lá. Nem nós, nem eles, nem todos. Xeque-mate em meia dúzia de jogadas, ou alguém atira os tabuleiros ao chão e a parte democrática do jogo soçobrará na demagogia e depois na anarquia. Já estivemos mais longe. 

(Versão do Público de 5 de Março de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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