ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
|
1.2.11
TECNOLOGIAS E MOVIMENTOS SOCIAIS Nestes dias, tornou-se um lugar-comum associar todos os movimentos sociais e grandes manifestações às redes sociais, como se a existência dessas redes produzisse, de per si, uma alteração qualitativa nesses movimentos. Existe a ideia difusa de que redes sociais significam maior poder das pessoas e menor poder dos Governos, mais democracia e menos ditadura, como se a conflitualidade entre a liberdade e o autoritarismo passasse hoje em primeiro lugar por tecnologias. Não escapa a um conhecedor dos movimentos sociais, se for também um observador pouco iludido sobre os deslumbramentos tecnológicos correntes, que estamos perante ideias na moda, repetidas por muito jornalismo superficial e que reduz significativamente o que se está a passar à ideia, que muitas vezes tenho combatido, de que as tecnologias por si só mudam a sociedade. As tecnologias não mudam, ajudam a mudar, e apenas podem moldar alguns aspectos dos movimentos sociais, mas muito longe de serem os factores dominantes. Veja-se o caso dos movimentos na Tunísia e no Norte de África. De um ponto de vista "subversivo", as novas tecnologias quer de hardware, quer de software - computadores, impressoras, telemóveis, SMS, Internet, Facebook, Twitter, blogues - são o sonho de qualquer revolucionário. Nas minhas actividades subversivas contra o regime de Salazar e Caetano nos anos sessenta e setenta, tudo que hoje se faz com enorme facilidade era não só muito difícil, caro e perigoso como, acima de tudo, muito ineficaz. Nunca fiz um telefonema, obviamente de telefone fixo, para nada que dissesse respeito à actividade clandestina. A utilização de telefones era proibida pelas boas regras clandestinas, na convicção, muito exagerada, de que a PIDE fazia escutas por todo o lado. A PIDE fazia de facto escutas, mas muito limitadas em número, e a relação entre o dispêndio de ter alguém a escutar e depois a transcrever e analisar o conteúdo das conversas tornava o seu custo proibitivo, com os meios rudimentares então disponíveis. Sabemos que a PIDE se estava a modernizar nesta área, mas o 25 de Abril chegou a tempo. Portanto, telefones, nada. Havia o correio, cartas e telegramas. E, de facto, o correio era utilizado, mas muito parcimoniosamente. Usava-se o correio para enviar propaganda clandestina com remetente falso ou anónimo, e alguma era interceptada pela PIDE. A PIDE fazia intercepção de correspondência, mas os frutos dessa intercepção variavam conforme o grau de clandestinidade das pessoas e organizações. A intercepção feita aos advogados oposicionistas era sistemática, mas as suas práticas clandestinas eram rudimentares. O PCP e os grupos de extrema-esquerda não usavam o correio para comunicar, a não ser usando linguagem "comum" cifrada - do género "o teu tio precisa de te falar", ou seja, o "partido" queria reatar um contacto que fora perdido - o que significava que as comunicações mais importantes e detalhadas seguiam apenas em mão. Essa linguagem chamada "comum" era usada também em casos como a célebre comunicação num anúncio de jornal de que Cunhal fora preso em 1949. Aliás, anúncios de jornais com mensagens cifradas disfarçadas de vulgares textos eram um meio de comunicação clandestino comum, muito usado pelo PCP. Tudo isto para dizer que as comunicações entre os "subversivos" eram muito difíceis e o muito que eles dariam por ter a possibilidade de um email enviado dum cibercafé para um endereço fictício do Gmail ou do Yahoo, ou uma página falsa do Facebook para comunicar. Ou por ter um telemóvel descartável e comunicações fáceis e acessíveis a qualquer momento. Claro que as polícias e os serviços de informação também sabem disto e patrulham, mais do que vulgarmente se pensa, todos estes meios. Seja como for, é uma imensa vantagem e a maleabilidade das novas tecnologias de comunicação dificultam, e muito, a acção do poder. Na série americana Wire (A Escuta) há um muito rigoroso retrato do jogo do gato e do rato entre a polícia e os traficantes, usando os telemóveis. E pode ser que, a prazo, a melhor comunicação seja a de antigamente, como a Al-Qaeda faz no Afeganistão: um homem de burro leva uma mensagem em mão. Não há satélite espião eficaz, só mesmo apanhar o homem e o burro. Ainda mais difíceis do que as comunicações entre os "subversivos" era a difusão de mensagens e apelos, fosse denunciando factos e actos, prisões e violências, fosse convocando manifestações. Nos anos sessenta e setenta, a revolução tecnológica era o copiógrafo que permitia tirar papéis em (poucos) milhares de exemplares, uma maravilha comparada com as muito rudimentares técnicas de impressão clandestina anteriores. Mas os copiógrafos eram caros, perigosos de comprar, visto que a PIDE controlava os poucos fornecedores desse material (muitos foram "roubados" nas universidades), e exigiam stencis, tinta e papel que eram igualmente caros e, no caso dos stencis, também perigosos de obter. Quem trabalhou com um copiógrafo é capaz, ainda hoje, de o desmontar peça a peça e remontar quase de olhos fechados, e sabe o que era a fragilidade dos stencis, que, após dois ou três milhares de exemplares, tendiam a rasgar pelos sublinhados. Na clandestinidade, a máquina de escrever usada para escrever um stencil deixava a sua assinatura única, pelo que nunca mais podia ver a luz do dia. E a máquina, a fita, o papel químico, o corrector de verniz, mais o stencil, a tinta do rolo, os exemplares estragados (o lixo não podia ser deitado fora, tinha que ser queimado), são pesadelos da memória para quem hoje escreve num processador de texto, num computador e "printa" de imediato. As alternativas para a propaganda eram as clássicas pichagens, também perigosas e implicando algum conhecimento da composição química da tinta que ficava a "arder" na parede de modo a que, quando a polícia pintava de branco, se ficava a ver o texto por baixo. Havia também os petardos para distribuir propaganda - as Brigadas Revolucionárias usaram-nos com sucesso - o atirar de papéis de lugares altos e depois fugir e mais meia dúzia de processos igualmente rudimentares. Lembro-me de ver um enorme e também perigoso esforço de encher de noite o chão de uma rua de panfletos e depois vir uma chuvada e estragar tudo. SMS, email, Twitter, Facebook, etc, seriam tão excelentes como então inimagináveis. Digo tudo isto para se perceber que o primeiro efeito das novas tecnologias hoje disponíveis é o de serem enormes facilitadoras da "subversão", mais difíceis de controlar pela polícia, e abrangendo um muito mais vasto número de pessoas. Mas, atenção: se dentro delas se mete lixo, sai lixo. Se dentro delas se metem slogans racistas e apelos à xenofobia, elas funcionam da mesma maneira do que se tratar de uma luta contra um ditador, como aconteceu na Tunísia. É por isso que usar o Facebook e os SMS num processo de agitação social e político por si só não significa nada sobre o conteúdo do movimento, nem classifica o movimento de per si como democrático. Há, no entanto, uma coisa em que o uso das novas tecnologias condiciona a movimentação social: é que elas são usadas em primeiro lugar pelos mais novos e pelos mais educados, ou seja, por determinados estratos sociais e etários. Mas, passada a fase de arranque inicial, como é o caso de revoltas como a egípcia, os movimentos só se tornam politicamente definidos quando entrarem em jogo grupos como a Irmandade Muçulmana, que não se iludem com modernidades, e trarão a força decisiva para moldar a situação, as mesquitas, os pobres, a massa humana que não preza particularmente a democracia e a liberdade. No Irão também foi assim, começou como uma luta contra a ditadura do xá e acabou em Khomeini. (Versão do Público de 29 de Janeiro de 2011.) (url)
© José Pacheco Pereira
|