ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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9.1.11
OS PGMIN E OS PGMAX A beatice das coisas felizes e optimistas que hoje se procuram de lanterna como o Diógenes dão aquela falsa sensação de que tudo isto que passamos é transitório, os amanhãs cantarão amanhã, e isso comunica rapidamente com a procrastinação, o eterno "farei amanhã o que posso fazer hoje". Usei três vezes a palavra "amanhã", porque é disso que se trata: é sempre tudo para amanhã. Talvez por isso, e como no primeiro dia do ano o coração é mole, aqui vai, pois, um artigo optimista sobre 2020. Amanhã. Depois de dez anos de grande crise económica, financeira e social, em que existiram várias intervenções do FMI, e com ajuda de vários planos de emergência europeus, Portugal encontrou uma certa forma de mediocridade estável. A partir daí pode começar a crescer um pouco, muito pouco, mas sempre era a crescer fechando os longos anos de recessão que atravessara. O país fazia agora parte de um novo conjunto, onde também estava a Grécia, de países classificados como PGMin, Países de Governo Mínimo. A Alemanha, o Reino Unido, a Holanda, os países nórdicos, a França e outros eram classificados como PGMax, Países de Governo Máximo. A classificação tinha tido origem num muito controverso estudo europeu, Die Fähigkeit zu schrumpfen. Eine Studie über die Reduzierung der Rolle der Regierung in Portugal und Griechenland (A Capacidade de Encolher. Um estudo sobre a redução do papel do Governo em Portugal e na Grécia), feito por uma equipa da Universidade Humboldt de Berlim, que, após alguma discussão e indignadas reacções dos PGMin, acabou por se tornar canónico. Portugal era agora um PGMin e daí vinham vantagens e inconvenientes. As vantagens eram, no fundo, só uma: havia um limiar de pobreza e de tristeza a partir do qual, não havendo guerra, a UE impedia que se baixasse mais. Uma espécie de Rendimento Mínimo Garantido. Esse limiar era muito baixo em termos europeus, mas, mesmo assim, Portugal era mantido aceitavelmente acima das desgraças africanas e algumas latino-americanas. Por uma vez a nossa geografia, no canto da Europa, mas mesmo assim na Europa, salvou-nos. No conflito que atravessou a década entre os europeístas federalistas e os eurocépticos soberanistas, este era o grande argumento dos europeístas: "Vejam lá o que nos aconteceria se não estivéssemos na Europa". Um PGMin era um país que mantinha uma soberania nominal, mas cuja política financeira era sediada em Bruxelas, sendo o seu orçamento preparado por uma Direcção-Geral da União Europeia (DGMIN), ou seja, pela burocracia internacional (a maioria dos funcionários era alemã, inglesa, francesa, holandesa, espanhola, belga, por esta ordem). Decisões sobre impostos, salários da função pública, pensões, investimentos, dimensão e forma da administração pública, sector nacionalizado (havia vários bancos e instituições financeiras nacionalizadas no fim da década), sector empresarial do Estado, etc., eram tomadas em Bruxelas. Qualquer euro2 gasto em Portugal (esqueci-me de referir que havia agora dois euros, o euro1, o da Alemanha, Estónia, República Checa, França, etc., e o euro2 para os PGMin) tinha que ter autorização da UE, do FMI, que consultavam os credores de Portugal antes de elaborarem qualquer orçamento. Os burocratas da DGMIN deslocavam-se várias vezes ao Dubai, a Tripoli e a Pequim, para elaborarem planos de financiamento da dívida, levando consigo o ministro português das relações com Bruxelas, cujo gabinete era numa ala recuada do edifício da Comissão e que raras vezes vinha a Portugal. Nas viagens à China, e ao Médio Oriente, ao abrigo da legislação portuguesa, o ministro ia em segunda classe no avião e os funcionários em primeira. Em Pequim, os funcionários ficavam no Beijing Raffles Hotel e o ministro no Beijing Huafu International Hotel, que, apesar de tudo, tinha karaoke. Num momento de lucidez, o ministro acordou a meio da noite a pensar na ironia que era a de estar ali também a fazer karaoke, a cantar mal com as palavras dos outros. Mas, depois, a inevitabilidade impôs-se. Era "incontornável", uma palavra muito usada no jornalismo português desses dias. Apesar da miséria do hotel de três estrelas num arrabalde de Pequim, um site português na Internet intitulado Vigilância sobre os Políticos, também conhecido como Cuidado com os Ladrões, argumentava que o ministro devia era ficar no King Parkview Hotel Beijing, cujos seis quilómetros de distância do centro da cidade onde havia as reuniões "bem podia Sua Excelência fazer a pé", como dizia um comentário de "J. Silva" no mesmo site. Este ambiente de revanchismo social e de animosidade contra os políticos em democracia percorrera toda a década, quase sempre em crescendo. Vários políticos tinham crescido explorando esse sentimento, alguns vindos das televisões para obter votos bramando contra os "ladrões", outros principalmente na extrema-esquerda chique exigindo uma "economia moral", ou seja, o comunismo disfarçado de exigência ética. Houve mesmo, na década de 10 a 20, uma tentativa de cópia do Tiririca, quando um cómico que passava na SIC Radical às duas da manhã concorreu a eleições como o Palhaço Chamuça, visto que o Palhaço Croquete já existia e ele, que era muito do Bloco de Esquerda, queria um nome multicultural. Num dos raros vislumbres de racionalidade ocorridos numa década muito dada à irracionalidade (bruxas, curandeiros e leitoras de cartas do Tarot passaram a comentadores dos telejornais), os portugueses não deram muitos votos ao Palhaço Chamuça, que voltou para a SIC Radical sem glória. Mas outros palhaços sem usar o nome tiveram muito mais sucesso. Compreende-se porquê. Os portugueses tinham perdido quase trinta por cento do seu rendimento durante a década, uma redução brutal que tinha provocado uma grande conflitualidade social, e uma ainda maior diferença entre os mais ricos e os mais pobres. O Correio da Manhã fazia agora um novo concurso, sobre o melhor slogan surgido na rua e, no ano em que apareceu o Die Fähigkeit zu schrumpfen, o slogan que ganhou foi uma representação do engenheiro Sócrates (no cartaz engenheiro aparecia entre aspas) e que dizia "querida eu encolhi o país". O Diário de Notícias não concordava porque convinha recordar que também Cavaco Silva era responsável assim como Manuela Ferreira Leite, como escreveu um jornalista isento mas autor de um blogue pró-Passos Coelho. O PS também era então praticante activo da arte de meter tudo no mesmo saco, mas, para o bem e para o mal, muitos portugueses achavam mesmo que era Sócrates o grande responsável e a polarização política na primeira metade da década fazia-se à sua volta. Portugal como PGMin também já não era a mesma coisa. Ao fim destes dez anos já quase não havia embaixadas portuguesas, e as que se mantinham eram cada vez mais simbólicas, Madrid, Caracas, Luanda, Tripoli. Toda a nossa diplomacia é agora europeia, e está integrada no Serviço Europeu de Acção Externa da UE. Temos uns embaixadores no Gabão, no Vanuatu, na Quirguízia, no Paraguai, e, o melhor posto onde está um português é o do Vaticano, o único que temos na Europa, porque ganhamos uma discussão com a Polónia invocando Fátima e a Virgem Negra de Czestochowa estava aborrecida com o crescimento do laicismo na sua terra. Também as nossas Forças Armadas praticamente já não existem, com excepção de uma pequena unidade de protocolo com banda, para receber dignitários estrangeiros nos Jerónimos, uma guarda costeira, umas equipas de helicópteros de salvamento no mar que ainda são nominalmente da Força Aérea. Há um corpo de comandos que acabou por ter que assumir funções policiais aquando dos tumultos de 2012. Todos os cortes orçamentais começaram sempre por aí, extinguindo-se a Lei de Programação Militar, e eliminando-se unidades militares, vendendo-se o seu património urbano como receitas extraordinárias. Houve nesta década um clamor quando Portugal perdeu direitos sobre a plataforma marítima atlântica, mas um PGMin não pode ter veleidades de grande nação. Um velho numa manifestação gritava "lembrem-se do Ultimato", mas a nova geração não sabia o que era o Ultimato e os blogues ridicularizaram o homem, um "Velho do Restelo". Mas cá estamos no fim da crise. A má notícia é que ficamos na situação de, para a pagar, estragar o país. Ou encolhê-lo como dizia a equipa do Herr Professor Dr. Schmidt que coordenou a Capacidade de Encolher. A boa notícia é que acabou a crise. Em 2020. Estão a ver como se pode ser optimista? (Versão do Público de 8 de Janeiro de 2011.) (url)
© José Pacheco Pereira
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