ABRUPTO

24.1.11


DO QUE FALAMOS, QUANDO FALAMOS DE "CRISE DO REGIME"


Tornou-se muito comum falar de "crise de regime", ou de "crise do sistema", em ambos os casos frases dotadas de muita ambiguidade, mas que a sensação de fim dos tempos torna cada vez mais comuns. De que é que falamos, quando falamos de "crise do regime"? Há várias hipóteses.

Falamos de crise da democracia? Sim e não. Falamos de crise da democracia enquanto regime, no sentido em que esta pode vir a ser substituída por uma ditadura pessoal ou um regime autoritário? E existe um perigo real e imediato de isso acontecer? Parece-me pouco provável que seja esse o sentido, tanto mais que não se antevê qualquer movimentação que possa impulsionar um ditador, partido ou movimento, e não se vê qual seja o putativo ditador. Se formos ao século XX, nenhum ditador chegou de surpresa e quer Mussolini, Hitler, Primo de Rivera ou Salazar "fizeram-se" durante um período de tempo considerável e a sua ascensão podia ser detectada com antecedência. Mesmo na América Latina, homens como Péron, Batista, ou Pinochet não apareceram ao dobrar da esquina e quando apareceram emanaram de instituições, como as forças armadas, com tradição putschista conhecida. Mesmo no caso de Pinochet, ele emergiu num contexto próximo de uma guerra civil, e se o homem podia ter sido uma surpresa, o comportamento da instituição militar já o é menos. Na verdade, em Portugal, quando se fala de "crise do regime", a última coisa que se imagina é um golpe militar (de que emanou o civil Salazar, e quase todos os ditadores latino-americanos), o que a actual atitude civilista das forças armadas afasta de todo. No Portugal de 2011, mesmo no meio de uma grave crise económica e social, é implausível ver uma ameaça de golpe de Estado por parte das forças armadas.

Então, em que sentido se pode falar de crise de democracia entendida como a "crise de regime"? Pode-se falar de crise das instituições democráticas, de per se, aqui já com muita mais razão de ser. Na verdade, o sistema de poder constitucional, quer a Presidência, o Governo, o Parlamento e os tribunais encontram-se numa enorme crise, quer do ponto de vista da sua legitimação, quer do ponto de vista da representatividade, no caso dos órgãos eleitos. Se deixarmos de lado a Presidência, a instituição menos atingida por esta crise, quer o Governo, quer o Parlamento, quer os tribunais conhecem uma crise com factores comuns, embora com raízes distintas. Essa crise é grave e é essa crise que justifica que se fale de "crise de regime".

Os tribunais, o sistema de justiça, não é percebido pela esmagadora maioria dos cidadãos como garantia de justiça. É entendido como mais uma burocracia do Estado que não funciona bem, ou melhor, que funciona muito mal, e onde os cidadãos não recorrem para se fazer justiça, nem confiam como instrumentos do Estado de direito. Bem pelo contrário, consideram-no um obstáculo à existência dessa mesma justiça, e juízes, magistrados do Ministério Público e advogados aparecem como uma burocracia hostil, muitas vezes perigosa e corrupta, incapaz de perseguir os criminosos e que usa os seus privilégios para perseguir os fracos e proteger os ricos. O funcionamento da justiça, lento, ineficaz, muitas vezes incompetente e discricionário, corporativo, é a prova dos nove para esta percepção pública, que tem vindo a agravar-se de forma exponencial nos últimos anos. O jogo de culpas e ambições entre juízes, magistrados, advogados e políticos, cada um usando sindicatos, órgãos de Estado, ordens, e fazendo uma utilização intensa da comunicação social, ainda mais agrava esta percepção, que encontra na realidade de todos os dias muitos casos para se consolidar.

O Governo aparece como uma entidade igualmente hostil, mais ao serviço dos seus membros e dos partidos do que da governação do país. Ou é visto como uma sucessão de sinecuras entregues por cunha, favor ou dinheiro, ou como um lugar onde se não manda nada, e nada se faz. A crescente incompetência de ministros e secretários de Estado, a preponderância de gabinetes e assessores envolvidos numa teia obscura de negociações e interesses e que não é escrutinada pelo voto, dá do poder executivo a pior das imagens e, infelizmente, a imagem não está longe da realidade.

A suicidária criação de sucessivos órgãos de "peritos" e "sumidades" que, não indo a votos, se pronunciam sobre a governação, tudo isto ainda esfarela mais o poder executivo, tornando-o mais um centro de gestão de interesses desirmanados do que um órgão coerente de poder. Com medo dos jornais do dia seguinte, vivendo de manobras mediáticas, para que são mobilizadas agências de comunicação e recursos vultuosos em publicidade, a governação tornou-se uma arte de "aparecer" mais do que de fazer, praticada por políticos fracos, muitas vezes incompetentes, produzidos pela fábrica partidária, ou trazidos por adorno das universidades e dos grupos económicos, actuando num limbo onde a crise económica e financeira faz desaparecer qualquer dinheiro e onde o que existe se esvai num mar de areia que parece sugar recursos sem resultados. Nos últimos anos, mesmo sentada em cima de milhares de milhões de euros, pedidos emprestados ou vindos da Europa, a governação parece (e é) mais uma sucessão de anúncios publicitários do que de realizações. É por isso que, quando se pergunta quem manda em Portugal, a resposta seja um banqueiro "do regime" e não um governante.

O Parlamento, e a representação que ele deveria garantir, é visto como um corpo inútil, igualmente corrupto, e cujas despesas são sempre entendidas como sumptuárias e desnecessárias. Se se perguntasse aos portugueses se deveria haver Parlamento, ou se pelo contrário bastava existir um governo de técnicos, legitimados apenas pelo seu presumido saber, duvido muito que a resposta pudesse ser outra não fosse "não", não é preciso um Parlamento. Nenhuma instituição mostra mais a "crise do regime", até porque o Parlamento é a instituição mais próxima do comum dos cidadãos, aquela que retrata melhor as forças e fraquezas da sociedade civil, mas também a única que em democracia representa a diferença de opiniões. Em períodos de "crise do regime", a diferença de opiniões tem pouco valor, e, na cultura "consensual" que 48 anos de ditadura deixaram em Portugal, muita gente pensa que um governo tecnocrático de "competentes" substituiria bem o Parlamento.

Por detrás de muita da crise do Estado está o modo como os partidos políticos evoluíram nos últimos anos e o modo como "se movem" entre o poder local e o poder nacional. Nos grandes partidos políticos de poder, PS e PSD, o aparelhismo é hoje a regra do poder e os partidos "viraram-se ao contrário", ou seja, funcionam para dentro, geram poder apenas dentro, constituem uma barreira para qualquer mecanismo de representação que venha da sociedade para o Estado, sem o mediar pelos interesses dos seus membros do aparelho. O tráfico de influências e lugares, o nepotismo, mesmo já com uma componente familiar, o rígido controlo burocrático, a criação de carreiras profissionalizadas no poder interno, a corrupção, tudo isto faz com que os partidos políticos sejam hoje o lugar que mais justifica a ideia de "uma crise de regime".

Resumindo e concluindo: se quisesse identificar os três mais importantes factores da "crise de regime" em Portugal, eles seriam a crise da justiça, a crise da representação (partidos e Parlamento) e a crescente subordinação do poder político ao poder económico, com fragilização acentuada do poder executivo. Não custa compreender como tudo isto encaixa perfeitamente no pano de fundo de uma comunicação social muito superficial e dominada pelo espectáculo e que produza um surto crescente de populismo. Já não falta muito para se exigir que os "políticos" tenham que usar uma estrela amarela na roupa para serem identificados como os pestíferos que são. Então a "crise do regime" estará claramente instalada como crise da democracia.

(Versão do Público de 22 de Janeiro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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