ABRUPTO

18.1.11


A ASCENSÃO DA DEMAGOGIA 

 
Aquele que lisonjeia a multidão, para tirar proveito pessoal.
Agitador que excita as paixões populares.
(Do Dicionário.)

Os tempos estão férteis para os demagogos sob várias versões e debaixo de várias capas ideológicas, à esquerda e à direita. Este é um dos aspectos mais perigosos dos anos nefastos que vamos atravessar, porque será pela sua voz e pela sua acção que se incendiará o discurso político, que se destruirá a já débil capacidade da racionalidade do debate público. Os temas da demagogia são clássicos (dinheiro, corrupção, desigualdade, riqueza, etc.) e, em tempos sem futuro, os demagogos incentivam a raiva com proveito próprio. Aqui vão alguns exemplos.



Francisco Louçã

Francisco Louça é o exemplo mais acabado do demagogo radical, possuidor de um verbo inflamado e que não poupa as palavras que mais excitam. Às vezes, ao ouvi-lo, como aconteceu esta semana no Parlamento num discurso insultuoso contra Cavaco Silva, o melhor exemplo que vinha à minha cabeça era o de um daqueles políticos populistas do “Bible Belt”, ou de um dos mais excitados membros nas manifestações do Tea Party. Uma das coisas mais parecidas com a extrema-direita americana é esta extrema-esquerda portuguesa, que deita a sofisticação às malvas quando fala das mafias, dos gangues, dos criminosos, e estes são… banqueiros.

Quando lhe chamam “pregador” acertam num aspecto e falham noutro. De facto, Louçã está longe de ser um dos místicos que, como muitas vezes aconteceu na história do socialismo, usavam uma linguagem utópica e milenarista, uma versão laica do profetismo bíblico, para prometer aos proletários uma Jerusalém libertada do jugo da exploração. Essa tensão religiosa nada tem a ver com Louça.

Louçã é outra coisa: é um comunista que não se nomeia como tal. A sua visão do mundo é a do marxismo, a que se soma a experiência leninista e trotsquista, revista sob a capa de uma linguagem que substituiu o jargão terminológico clássico, por uma visão moralista da realidade. Louça é um táctico cínico, que se move bem nos meios da burguesia urbana intelectual radicalizada e menos bem nos meios dos trabalhadores. Esses são o terreno do PCP, muito menos demagógico e populista do que o Bloco de Esquerda.

Aquilo em que a classificação de “pegador” acerta é no facto de, por razões de utilitarismo político (e também de ocultação), nele se substituir a linguagem marxista da exploração por um discurso moralista em que o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado, são usados para classificar o seu mundo e excluir o dos outros. Não há um átomo de tolerância no que diz, mas uma sucessão de proclamações, à Savonarola, dos males do mundo ferido pelos corruptos, pelos ladrões, pelos ricos, pelos poderosos. E isso é que é pregação, demagogia pura.




Petição do Correio da Manhã

O Correio da Manhã tem patrocinado uma petição sobre o enriquecimento ilícito, que tem sido assinada por membros do sistema judicial, polícias, magistrados do ministério público, juízes, ou articulistas que têm aparecido publicamente em campanhas contra a corrupção.

Como acontece habitualmente com a demagogia, esta iniciativa aponta um problema real: a corrupção que se manifesta pelo súbito e inexplicável enriquecimento de alguns políticos e que provoca um enorme repúdio social. É igualmente verdade que o sistema de justiça tem sido incapaz de a combater e levar os políticos corruptos à prisão, como é desejo de todas as pessoas decentes. Mas já não é líquido que esta ineficácia se deva necessariamente à inexistência de legislação aplicável, mas sim a outros factores, incompetência da investigação, incúria dos magistrados, ou pura e simplesmente promiscuidade entre os meios corruptos da política e os meios judiciais. A permanente condução política dos processos que envolvem políticos, gera a maior das suspeitas sobre a independência dos dois sectores e sobre se há ou não um jogo de cumplicidades mútuas.

O texto da petição do Correio da Manhã é o seguinte: "O titular de cargo político ou equiparado que, durante o período de exercício das suas funções ou nos três anos seguintes à respectiva cessação, adquirir, por si ou por interposta pessoa, quaisquer bens cujo valor esteja em manifesta desproporção com o seu rendimento declarado para efeitos de liquidação do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares e com os bens e seu rendimento constantes da declaração, aditamentos e renovações, apresentados no Tribunal Constitucional, nos termos e prazos legalmente estabelecidos, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos. O infractor será isento de pena se for feita prova da proveniência lícita do meio de aquisição dos bens e de que a omissão da sua comunicação ao Tribunal Constitucional se deveu a negligência."

Parece simples, mas não é. Por exemplo, como é que se sabe qual é a “manifesta desproporção” e como é que se impede que esta fórmula genérica não possa ser utilizada para perseguições, vinganças e abusos? Não se impede. E no actual estado de coisas basta saber-se que há uma investigação deste tipo, mesmo que apenas iniciada e depois arquivada, para manchar uma reputação sem qualquer culpa. Basta ler o texto que a seguir cito, oriundo do VIII Congresso dos Juízes Portugueses, assim como declarações avulsas de vários magistrados do Ministério Público, para se perceber que este seria o instrumento ideal para que a selecção dos políticos em democracia fosse feita pelo sistema judicial.
Acresce o problema ainda mais grave que esta petição inverte claramente o ónus da prova e a discussão que se pode ter –mais certeira do que esta petição demagógica – é se a luta contra a corrupção justifica que se restrinjam direitos, liberdades e garantias. Então sim, o debate seria em terreno da democracia, e não no da demagogia.


Os juízes sedentos de poder político

O justicialismo é um dos aspectos mais preocupantes do ascenso da demagogia nos dias de hoje. Não se trata de um fenómeno novo, visto que a sua primeira manifestação, depois do 25 de Abril, foi o conluio objectivo do PGR e de um jornal, o Independente, há alguns anos atrás. Então assistiu-se a um mecanismo de condenação pela imprensa de pessoas que as instâncias judiciais não conseguiram, ou não quiseram, ou não foram capazes, de levar a tribunal e de condenar. Em vez de serem condenados em tribunal eram condenados pela opinião pública através de fugas selectivas oriundas da Procuradoria. Por seu lado, o Independente foi crucial para a criação de um partido populista radical de direita, a versão PP do CDS.

Em Portugal, como em Itália, um grupo de agentes da justiça, magistrados e juízes, usam o justicialismo para ganharem poder político à margem dos mecanismos democráticos. Ao mesmo tempo que o sistema judicial se revela particularmente ineficaz para perseguir corruptos, aspira a ganhar poder político em nome dessa luta contra a corrupção. Por tudo isto não espanta que o VIII Congresso dos Juízes Portugueses fosse apresentado por um texto anunciando, sob a forma de perguntas retóricas, um século XXI como o “século do poder judicial”: “Se o século XIX foi o século do poder legislativo e o século XX o do poder executivo, poderá o século XXI vir a ser o século do poder judicial?

O texto é curiosamente impregnado por uma retórica esquerdista em que, após “o eclipse de todas as narrativas históricas grandiosas”, ou seja do comunismo, surgiram “democracias descontentes” (?). Esse descontentamento abre caminho para “uma transferência de legitimidade dos poderes legislativo e executivo para o judicial” como uma “exigência de qualidade da própria democracia e da coesão social”. Todo o texto é demasiado revelador, talvez até mais revelador do que os seus signatários pretendiam, daquilo a que se chama um “novo protagonismo político” dos juízes que “corre o risco de se vir a assumir como verdadeiro poder”.

Está tudo dito e o que está dito nada tem a ver com a democracia nem contente, nem descontente.

(Versão do Público de 8 de Janeiro de 2011.)

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© José Pacheco Pereira
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