ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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6.12.10
As "revelações" do WikiLeaks de 250.000 documentos diplomáticos americanos tem sido a principal fonte de notícias de quase toda a imprensa mundial na última semana. As implicações, quer da quebra do sigilo das comunicações diplomáticas, quer do conteúdo das mensagens, estão ainda no adro e muita água vai passar por baixo da ponte. Mas antes de deixar passar toda essa água seria bom pensar um pouco sobre o que aconteceu e o seu significado e não apenas embarcar no voyerismo imediato que as "revelações" sugerem.
VZCZCXRO9896 PP RUEHAG RUEHBC RUEHDE RUEHKUK RUEHROV DE RUEHLB #0523/01 1071642 ZNY SSSSS ZZH P 161642Z APR 08 FM AMEMBASSY BEIRUT
TO RUEHC/SECSTATE WASHDC PRIORITY 1544
INFO RUEHEE/ARAB LEAGUE COLLECTIVE
RUCNMEM/EU MEMBER STATES COLLECTIVE
RUEHNO/USMISSION USNATO 2418
RHMFISS/CDR USCENTCOM MACDILL AFB FL
RHEHNSC/NSC WASHDC O principal risco no modo como defrontamos estas "revelações" é considerar que elas são jornalismo, quando elas são em princípio e na sua essência um acto político. E um acto político contra os EUA e os seus aliados, inserido num processo em que o WikiLeaks já tem precedentes nas anteriores fugas de informação sobre a guerra no Afeganistão. E face a este acto político cada um toma a posição que entende, sendo claro que a discussão ganha em começar na centralidade do seu significado político antes de mais nada. Neste contexto, estas revelações vêm na sequência da divulgação em 1971 dos chamados "documentos do Pentágono" por Daniel Ellsberg, como manifestação contra a guerra do Vietname. Ao se atribuir um significado político a estas "revelações", tal significa que elas podem provocar danos no "adversário" e que é esse o objectivo principal da divulgação destas informações classificadas. Tal efeito só existe em democracias, em que há opinião pública, e é por isso que não são os russos, os chineses, os iranianos e os norte-coreanos que são afectados, é a posição "ocidental" no seu conjunto. S E C R E T SECTION 01 OF 04 BEIRUT 000523 SIPDIS
NOFORN
SIPDIS
NSC FOR ABRAMS/SINGH/YERGER, STATE FOR NEA/ELA,
EO 12958 DECL: 04/16/2018
TAGS PTER, ECPS, PINR, LE, IR, SY
SUBJECT: LEBANON: HIZBALLAH GOES FIBER OPTIC
REF: BEIRUT 490
Este é o fio da navalha em que se movem as "revelações" do Wikileaks, mas mesmo este fio pode ser ainda mais afiado. Exactamente por se tratar de uma operação política contra os EUA e os seus aliados, e as "guerras" em que estão envolvidos, este tipo de "revelações" são elas próprias parte dessas guerras. Acresce que o WikiLeaks está a tornar-se uma plataforma desejada para grandes operações de desinformação, que podem, a partir da credibilidade de documentos que, tudo indica, até agora serem legítimos, levar à divulgação de documentos falsificados ou de uma mistura de documentos legítimos com outros falsificados, uma técnica que alguns serviços de espionagem, em particular o extinto KGB, dominavam. Como para manter a confidencialidade das fontes não pode haver verdadeiro escrutínio, não é muito complexo para um serviço de informação profissional e com grandes recursos usar o WikiLeaks no futuro, ou uma outra organização deste tipo. A intencionalidade política das "revelações" impede que aceitemos a bondade da retórica do WikiLeaks sobre a "transparência", a necessidade do controlo dos governos e o direito de todos à total informação sobre os procedimentos governamentais, como justificativo da publicação destes documentos. Isso teria sentido se, em vez de uma divulgação maciça de documentos, uns com relevância pública, outros sem qualquer valor no esclarecimento da opinião, se tivesse feito aquilo que um órgão de comunicação social deveria fazer - trabalhar a informação, editá-la e divulgá-la por um critério de interesse público que entrasse em conta com outros interesses igualmente presentes nestes documentos É o caso da protecção das fontes do risco pessoal que podem correr com estas "revelações", evitando atingir sem utilidade pessoas e organizações apenas por mexericos que em nada melhoram a nossa informação sobre a realidade, e, acima de tudo, a corrosão da diplomacia, uma actividade fundamental para as relações internacionais e a manutenção da paz, neste caso a diplomacia "ocidental" no seu conjunto. A quebra de confidencialidade de um tão grande número de documentos significa uma enorme devastação para a diplomacia americana e uma perda importante para a actividade diplomática tout court. S E C R E T STOCKHOLM 000194 SIPDIS S/CT SHARRI R. CLARK E.O. 12958: DECL: 03/20/2019 TAG PTER, PGOV, ASEC, EFIN, ENRG, KCIP, SW SUBJECT: SWEDEN: CI/KR RESPONSE FOR S/CT REF: SECSTATE 15113 Classified By: CDA Robert Silverman for reasons: 1/4 (B), (D), (E), and (G) A Administração americana, agora na era de descompressão de Obama, sofre também de uma crise na sua credibilidade e fiabilidade. A Administração americana já devia saber, por razões bem mais negras do passado recente, que a facilidade de manter grande número de dados em bases electrónicas mesmo com um acesso muito restrito, - o que não era o caso da base onde estavam estes telegramas - tem o preço de permitir operações de cópia maciça para um suporte electrónico que facilmente permitem desviar não centenas mas muitas dezenas de milhares de documentos. Enquanto o "arquivista" Mitrokhin andou penosamente anos a fio a passar documentos à mão nos arquivos do KGB, já Aldrich Ames, o grande traidor da CIA, passava com facilidade milhares de documentos em disquetes, mesmo sem fazer qualquer triagem, que entregava aos seus controladores soviéticos. Registe-se, no entanto, que a natureza dos documentos divulgados pelo WikiLeaks não é a de serem documentos de intelligence, mas documentos cuja sensibilidade é menor, mesmo quando usam a classificação de "secreto" e "secreto/não disseminável a estrangeiros". De qualquer modo, os estragos vão ser muito difíceis de reparar. Sem segredo e confidencialidade muito do reporting das embaixadas é impossível, o que significa que o receio da perda da confidencialidade levará a uma enorme retracção na franqueza das conversas que embaixadores, governantes, personalidades com influência travam entre si, mesmo sabendo que elas são relatadas pelos canais diplomáticos habituais. VZCZCXRO3981
PP RUEHDE RUEHDIR
DE RUEHKU #0110/01 0361636
ZNY SSSSS ZZH
P 051636Z FEB 09
FM AMEMBASSY KUWAIT
TO RUEHC/SECSTATE WASHDC PRIORITY 2777
INFO RUEHZM/GULF COOPERATION COUNCIL COLLECTIVE PRIORITY
RHEHNSC/NSC WASHDC PRIORITY
RHMFISS/HQ USCENTCOM MACDILL AFB FL PRIORITY
RHBVAKS/COMUSNAVCENT PRIORITY Dito isto, eu não ponho em causa que possa haver interesse público, logo justificação, na divulgação de alguns documentos. Nos documentos revelados pelo WikiLeaks há muitas "histórias" jornalísticas fidedignas e muita história para fazer a prazo. Mas isso só é válido se os documentos forem entendidos como "fonte" e não como produto final, porque entender os documentos em si mesmo como sendo as "revelações" é o mesmo que considerar que imagens não editadas são jornalismo televisivo. Este trabalho começa agora e ainda é difícil fazer uma apreciação do valor do seu conteúdo, visto que apenas um pequeno número de telegramas diplomáticos foram divulgados. Analisando o seu conteúdo, não parece haver muitas surpresas, nem factos verdadeiramente novos. Só novatos nas relações internacionais é que se espantam pelos sauditas e os xeques do Golfo Pérsico temeram um Irão nuclear ao ponto de o quererem bombardear, numa sintonia com os israelitas que tem da mesma origem: a bomba nuclear iraniana está virada contra eles e árabes não são persas e sunitas não são xiitas. Que Berlusconi faz "festas selvagens" só pode ser um eufemismo. Que o poder de Putin é mafioso só pode surpreender quem não conheça a história da Rússia que começou nas célebres distribuições familiares do tesouro de bens da ex-URSS de Ieltsin. Que a política externa alemã não é das mais sofisticadas também não é uma grande surpresa. Por aí adiante. Mas, pelo que já se conhece, a diplomacia americana hoje não parece ser especialmente mefistofélica, nem tão "realista" como era no tempo de Kissinger (quando se puder comparar telegramas entre administrações vai-se perceber) e a qualidade do reporting das embaixadas americanas, sendo irregular, não parece medíocre, bem pelo contrário. Tomara eu que o mesmo se passasse por cá. Mas, como disse, a procissão ainda está no adro. (Versão do Público, 4 de Dezembro de 2010.) (url)
© José Pacheco Pereira
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