ABRUPTO

20.9.10


TUDO SE GASTA


Uma parte considerável do meu tempo é ocupada a salvar, ordenar, organizar, limpar, proteger, digitalizar papéis velhos, panos velhos, objectos velhos, de latão, plástico, madeira, bronze, etc., etc., com relação próxima ou longínqua com a actividade política, seja especificamente partidária, seja sindical, cooperativa ou de instituições com intervenção social, organizações mutualistas, Maçonaria, etc. Deixemos os livros de parte, que são outro mundo, e passemos ao mundo dos panfletos, folhetos, brochuras, postais, cartazes, prospectos, bilhetes, reclames, aquilo a que se chama "efémera". A esses "efémera" de papel somam-se outros "efémera", objectos, aquilo a que os brasileiros chamam "brindes" (e que foram recentemente proibidos em campanha no Brasil). No seu conjunto cabem quase todos, menos os manuscritos e cartas, na categoria a que os comunistas chamavam agit-prop, agitação e propaganda.



(Da esquerda para a direita: medalha do PCP; postal nacionalista revolucionário; pin e noz de Ross Perot, candidato independente às eleições presidenciais americanas; nota falsa contra Sá Carneiro "o sacador-mor"; pin de Obama; autocolante anarquista.)

A variedade de objectos é imensa e vai desde uma lata de bolachas com a República de barrete frígio, passando por um pin dum candidato ao Congresso americano, até ao chapéu de palha que Paulo Portas usou com uma faixa verde que dizia "nós semeamos". Inclui porta-chaves, isqueiros, caixas de costura, caixas para medicamentos, emblemas, pins, autocolantes, bustos, faixas de propaganda, cartazes, tarjetas, dedais, bandeiras, flâmulas, vinhetas, pisa-papéis, botões de punho, T-shirts, fitas, óculos de sol, caixas de fósforos, medalhas, cinzeiros, gravatas, etc. O seu tamanho varia entre o de um quase invisível alfinete de lapela, até à faixa de rua com vários metros de cumprimento. Na minha colecção, talvez os maiores objectos sejam exactamente uma enorme faixa de lona da campanha eleitoral de George Wallace de 1964 e outro de um outdoor do PSD da década de noventa. Não é fácil conservar estas coisas, mas a verdade é que quase ninguém as conserva.

Quando se observa esta enorme massa de material, principalmente do século XX, podem tirar-se algumas conclusões sobre o modo como estes objectos reflectem importantes mudanças sociais e políticas, que são o retrato da história do século. E se quisermos perceber o processo a que se chama ligeiramente o "fim das ideologias", encontramos aqui também abundantes elementos.

 

(Da esquerda para a direita: fotografia autografada de Dick Cheney; faixa de pano da CGTP; autocolante primitivo usado no "luto académico" de Coimbra; cinzeiro com página do Avante!; setas do PSD moldadas em cera; pin de uma candidatura a xerife nos EUA; pin de Mao Zedong do período da Revolução Cultural; saco de alfazema da candidatura de Ferreira do Amaral a Lisboa..)

Nos anos vinte e trinta, os grandes movimentos totalitários deixaram-nos uma enorme quantidade de símbolos, com uma forte presença iconográfica. Os nazis foram sem dúvida os mais eficazes na utilização de uma simbologia fortemente ancorada em velhos "sinais" com origem religiosa, com uma poderosa atracção psicológica, nem sempre consciente. Jung explorou esta relação inconsciente e o seu poder. A cruz gamada é o melhor exemplo, mas associa-se, nos movimentos com influência nazi, a outros símbolos como a cruz céltica ou as runas nórdicas, e ao fascínio ritual pela morte representado na caveira das SS. Comparados com a simbologia nazi, a de influência fascista, o fascio italiano, a Francisca gaulesa ou as setas da Falange espanhola têm menos impacto visual.

 
 (Emblema do NSADP).

Todos estes símbolos estão associados a uma encenação no espaço público igualmente poderosa no seu fascínio visual. A capacidade dos nazis em encenarem exibições de poder com forte impacto visual, como são as imagens das grandes paradas em Nuremberga, integrando os símbolos nas bandeiras, com a música marcial e com as marchas de milhares de homens e mulheres com uma ordem perfeita e monolítica, tornaram essas imagens ainda hoje em momentos de garantida audiência seja na televisão seja no YouTube.

Os comunistas, por sua vez, foram igualmente capazes de encontrar um símbolo forte para o seu movimento, a foice e o martelo, mas mais débil na sua atracção visual inconsciente do que a cruz gamada. Na verdade, a foice e o martelo estão mais próximos da simbologia fascista, traduzindo uma imagem mais "laica" e política e menos intensa do que o símbolo solar da cruz gamada. Em ambos os casos, trata-se aqui de representar um conceito político. O fascio italiano traduzia uma ideia de força na unidade total, as varas presas por uma corda que eram impossíveis de quebrar juntas, a que se acrescentava a referência ao império romano, fonte de legitimação histórica do fascismo. No caso do comunismo, a foice e o martelo representavam a ideia da "aliança operária camponesa", um puro conceito político associado à teoria leninista do poder soviético. Transformados na bandeira soviética, vieram depois a ser usados por quase todos os partidos comunistas e ainda hoje estão presentes em bandeiras de África fora da área do "socialismo real": Angola (onde a roda dentada e a machete fazem o papel da foice e do martelo) e Moçambique (onde uma arma e uma enxada, colocados da mesma forma da foice e do martelo, se sobrepõem a um livro e ao outro símbolo comunista, a estrela de cinco pontas).

Os partidos e forças políticas não-totalitárias nunca desenvolveram uma simbologia tão intensa como a do nazismo, do fascismo e do comunismo, embora nos anos trinta houvesse tentativas nesse sentido. Isso tem obviamente a ver com a menor dependência de uma noção de todo, centralizada num "comando" e numa "unidade" total, a ausência de uma hierarquia de poder interno e uma menor dependência da agitação e propaganda. Quando tiveram símbolos mais fortes isso deveu-se quase sempre a uma situação de resistência, de que o caso mais interessante é o símbolo das três setas que eram sobrepostas à cruz gamada ou apontadas aos inimigos, como num cartaz alemão dos anos trinta, contra os monárquicos conservadores de Papen, os nazis de Hitler e os comunistas de Thaelmann.

(Emblema da SFIO dos anos trinta.)

No caso português apenas dois partidos têm simbologia histórica: os comunistas, que usam a foice o o martelo (e que têm vindo a reforçar o papel identitário do símbolo), e os sociais-democratas, que usam as três setas da social-democracia dos anos trinta. Os socialistas tiveram o seu símbolo desenhado em Itália em vésperas do 25 de Abril, um punho com uma espada estilizada, uma irónica, e presumo inconsciente, aproximação aos pulsos de Cristo na cruz atravessados pelos cravos. Depois evoluiu para uma estilização menos traumática do punho, até o substituir pela rosa que muitos partidos socialistas europeus hoje usam. O símbolo original tinha uma mensagem política, o actual é um desenho de marketing. O mesmo acontece com o símbolo do PSD, cujas origens são ignoradas ou nada dizem às novas gerações de dirigentes políticos do partido e que se vêem aflitos para encontrar forma de adaptar as setas a um design mais "moderno".

O símbolo do CDS é aquilo que pretende ser: um partido rigorosamente ao centro, cujas setas prendem a bola (o "centro") sem possibilidade de libertação. Compreende-se a razão, porque também aqui, no período áureo do PP, o símbolo sofreu alguns tratos de polé por ser demasiado "centrista". O símbolo do Bloco de Esquerda, uma personalização da estrela comunista de cinco pontas numa figura humana, não é original e existe com pequenas variações em vários movimentos do mesmo tipo, uns próximos do esquerdismo, outros do comunismo, como por exemplo a "Galiza Nova".

Mas, em todos os partidos, com excepção do PCP, o valor identitário do símbolo tem vindo a diminuir. Quando se observam os "brindes", e a propaganda em geral, é evidente o desgaste do seu valor, que desaparece em muitos objectos e mesmo em cartazes e panfletos, ou é tão adulterado que se perde o seu sentido original. Quem usa hoje na lapela emblemas partidários, que tinham forte presença nas bancas de propaganda nos anos setenta e início dos anos oitenta? As T-shirts ainda mantêm alguma simbologia, mas esta já compete com muitos elementos visuais de escasso poder simbólico.

Também aqui se sente o "fim das ideologias", também aqui se vê que tudo se gasta.

(Versão do Público de  18 de Setembro de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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