ABRUPTO

12.9.10


O QUE TEM QUE SER TEM MUITA FORÇA

Em teoria quase tudo é possível. Na prática, quase nada é possível, sem enormes consequências. É o retrato de um país cuja dependência do exterior levou a uma situação de efectiva perda de soberania, com efeitos devastadores na independência do nosso povo, do nosso Parlamento, dos nossos partidos. Quem não compreende esta situação não compreende o que se passa hoje na vida política portuguesa.

Melhor exemplo da enorme anomia que atingiu a vida política, um sinal poderoso de impotência, é a indiferença com que se reagiu (com a excepção de Manuel Alegre e do PCP) às propostas de um droit de regard, na prática de um direito de veto, sobre o Orçamento do Estado que era português. Só esse facto mostra como, para muitos portugueses e, em particular, para muitos políticos, se torna indiferente que uma instituição supranacional - que sabemos nesta matéria ser mais alemã do que supranacional - se substitua ao Parlamento português na função que está na essência da sua existência: decidir sobre o Orçamento. Como, aliás, se tornou também vulgar que representantes de uma agência de rating tenham assistido a uma sessão do Parlamento, lembrando pela sua presença que as decisões que estão ali a ser tomadas serão tidas em conta na avaliação de Portugal, e os enormes custos dessa avaliação irão pesar sobre toda a vida portuguesa. Cá em baixo os deputados e as suas direcções pensam duas vezes no que vão dizer e isto é uma tragédia para a autonomia da política e a sua capacidade de ser "portuguesa", mesmo residualmente.

Claro que a culpa é nossa, a culpa é de governos que andaram inconscientemente a gastar de mais com dinheiro emprestado, e, por muito que isto custe a muita gente que preferiria ser salomónica para parecer estar acima dos partidos, em particular o descalabro dos últimos anos em que a dívida disparou sem poder ser disfarçada estatisticamente, como é costume. Muitos tem culpa, mas alguns têm muito mais culpa, em particular aqueles que podiam e deviam ter-se apercebido a tempo que era necessário travar este caminho. Houve quem prevenisse, mas eram "velhos do Restelo". O primeiro-ministro nada fez para poder manter um discurso de optimismo bacoco, cujo centro era a desresponsabilização própria e a arrogância de quem se achava estar entre os melhores governantes do mundo até que uma crise mais ou menos conspirativa lhe caiu na cabeça. Até Obama o copiava e foi o que se viu.


Não se trata de qualquer nacionalismo ou sequer anti europeísmo primário. Não me sobram dúvidas que muitos aspectos da crise têm que ser combatidos a nível europeu. A minha dúvida está em saber até que ponto esse combate se faz pela conjuntura, ou se se é capaz de ir mais longe na percepção de que a crise de 2008 se manifestou na Europa por cima de muitos problemas estruturais que os governantes europeus têm cuidadosamente evitado defrontar: os custos incomportáveis do "modelo social europeu", que deu riqueza a duas gerações de europeus, mas que ameaça dar pobreza às seguintes; a perda de competitividade europeia face à globalização; a decadência de muitas instituições que estiveram na base do progresso europeu, como as universidades e centros de investigação; as dificuldades de a Europa servir de melting pot, como os EUA, para as suas populações imigrantes, em particular aquelas que, por razões religiosas e culturais, são mais distantes do padrão de vida laica das sociedades europeias, etc., etc. Uma Europa que gastou muito do seu orçamento a manter uma agricultura subsidiada para uma pequena parte da sua população, mostrou o peso dos interesses nacionais incrustados, que eram o outro lado do "motor franco-alemão".

O caminho europeu dos últimos anos tem sido errado e os resultados desse erros estão à vista, sem ninguém os querer ver. Apostando num upgrade político artificial da Europa, que só mobilizava governantes e "forças vivas", mas que era visto com desconfiança pelos povos, de tal modo que só foi possível de fazer nas costas dos europeus, acabou-se por reforçar o nacionalismo e o poder de facto de alguns Estados: aqueles cuja economia mostra mais pujança e que têm os cordões da bolsa, ou seja, a Alemanha. Os gregos tiveram essa árdua lição, seguidos dos portugueses, espanhóis, italianos e irlandeses. Todos estão mal, mas numa coisa nós estamos muito pior: devemos muito, ninguém acredita que paguemos as dívidas e de mês a mês precisamos de pedir dinheiro, cujo preço é cada vez mais caro.

É verdade que desde o início deste ano a realidade da perda de soberania, ou de uma maior perda de soberania, é um facto e não data da conversa sobre o direito de vetar os orçamentos. A sucessão dos PEC, o seguinte sempre mais duro que o anterior, só se deveu a exigências do exterior e à ameaça do nosso Estado e dos nossos bancos não poderem obter o financiamento que precisavam desesperadamente. Desesperadamente é a palavra.

Ora esta situação brutal e sem disfarces, mais as suas consequências recessivas, no desemprego, no empobrecimento dos portugueses, devia ser o centro do debate político português e não é. Com dois partidos, PS e PSD, completamente subordinados a uma lógica mediática, e com uma comunicação social muito contente com a "produção" de eventos, desafios, ultimatos, "arrasamentos", prazos terminais, ameaças e contra-ameaças, a política soma-se ao futebol, mais o ocasional acidente, para facilitar a vida das redacções e permitir a "narrativa" espectacular de entretém que nos distrai da realidade. O domínio da coreografia é total, ocasionalmente interrompido por um pico de realidade que obriga a mais um PEC qualquer, mas, no dia-a-dia, o alheamento dos agentes políticos dos problemas reais do país chega a ser afrontoso. O efeito é dar da política portuguesa um espectáculo de irrealidade e distância que traduz não só defeitos antigos, que se acentuaram geracionalmente, como seja o fascínio de "viver pela imprensa", mas é também um efectivo espectáculo de impotência.

Ambos os partidos alternantes estão tão metidos nesta coreografia que parecem não conseguir fazer outra coisa a não ser trocar passos de dança. O PS tem dois planos: o A é manter-se no poder quanto tempo puder até que mude o clima económico ou haja um milagre; o plano B é ir a eleições, com toda a agressividade possível, se o PSD lhe der o pretexto de se apresentar como vítima de alguma "irresponsabilidade". O trauma de uma crise política que provoque a queda do Governo dá-lhe sempre vantagem, por isso têm plano A e B e nós percebemos com relativa transparência o que querem.

O caso é do PSD é mais complicado, porque não se percebe muito bem se existe uma estratégia e qual é ela, ou se se vive só do sucesso das manchetes e das sondagens do dia seguinte. Os actuais dirigentes do PSD queriam votar contra o PEC1, que acabou por passar com a abstenção do partido contra sua vontade. Depois, não só votaram a favor do PEC2, como se comprometeram ao mais alto nível com ele, tornando-o um acto de quase co-gestão governamental. Agora ameaçam não votar o Orçamento e apelaram ao Presidente para dissolver a Assembleia até ao último dia em que o podia fazer. Como a situação económica e financeira face ao exterior, que justificou a abstenção no PEC1 e a corresponsabilização no PEC2, não se alterou (até se agravou no que diz respeito à dívida), só pode haver uma razão para abrir uma crise política que derrube ou leve à demissão do Governo: considerar-se que este é hoje (como não o era há poucos meses) um factor de tão grande prejuízo nacional que derrubá-lo vale o preço de uma crise política gravosa internacionalmente para Portugal.

É um ponto de vista legítimo e, se for claramente explicado, pode dar consistência à política do PSD, mas não basta justificá-lo por aspectos do Orçamento, tem que se ir mais longe. Em particular, tem que se explicar aos portugueses a ponderação entre as vantagens de uma crise governativa e novas eleições só possíveis daqui a muitos meses, e as consequências na precária posição da dívida portuguesa. Se tudo isto for explicado com clareza, a política do PSD ganhará sentido e parecerá menos errática do que é hoje. Mas é um caminho muito duro e arriscado e está muito para além de obter bons títulos e editoriais no dia seguinte, e não dá boas sondagens, que premiaram até agora o consenso e o entendimento com o Governo, não a ruptura.

Há sempre outra alternativa para todos. Manter a coreografia, com entradas de leão e saídas de sendeiro, o que é sempre um bom espectáculo, o Governo fazendo de conta que governa, a oposição fazendo de conta que é oposição e, de tempos a tempos, rangendo os dentes, fazer o que as agências de rating e a Alemanha querem que nós façamos, esperando por melhores dias. O que tem que ser tem muita força.

(Versão do Público de 11 de Setembro de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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