ABRUPTO

25.9.10


O ABRUPTO FEITO PELOS SEUS LEITORES: 
CONTRA A MOÇÃO DE CENSURA CONSTRUTIVA


Antes de tudo, devo apresentar-me : o meu nome é Paulo José Canelas Rapaz. Vivo actualmente em Paris, onde estou a doutorar-me em Ciências Politicas pela Universidade Panthéon-Assas (Paris II), na qual já fui assistente. O tema da tese é : “o poder neutro do Presidente da República Portuguesa”. (...)

Quis enviar o presente email para partilhar algumas considerações sobre a eventual introdução da moção de censura construtiva na CRP. Proposta abandonada no projecto de revisão do PSD, primeiro apresentado à chamada comunicação social e só depois aos Srs. e Sras. Deputados… Mas que foi retomada pelo PS segundo as palavras do ministro da presidência. Portanto as minhas seguintes considerações poderão revelarem-se inúteis devido à forte tendência do partido no poder a publicitar realidades sucessivas.

No entanto, mesmo se duvido que já não o tenha feito, espero que tome em conta as seguintes considerações para sua reflexão sobre o tema, não só como pessoa interessada pelo Político, mas também como “opinion provider” senão “maker”, e sobretudo como deputado com poderes constituintes.(...)

Como sabe a moção de censura construtiva é de origem alemã. Foi criada em 1949 para evitar o que se passou durante a República de Weimar, isto é : o partido nazi e o partido comunista coligavam-se para abater sucessivos governos constituídos por forças moderadas, instabilidade que se agudizava com as consecutivas dissoluções do Reichstag. Avançando com os habituais argumentos antiparlamentares, os partidos extremos progrediam assim nas eleições subsequentes. Como é de conhecimento geral, este movimento terminou com a ascensão de Hitler à chancelaria. Tais condições, um Parlamento com extremos fortes, nunca existiram na Alemanha do pós-guerra, e mais importante, não existem em Portugal. A moção de censura construtiva é um bom exemplo de que as novas constituições são escritas para resolver problemas de regimes passados e portanto não existentes no presente.

Na história política alemã, o mecanismo só foi utilizado uma vez com sucesso, em 1982. O governo SPD+FDP do chanceler social democrata, Helmut Schmidt, foi derrubado por causa de uma moção de censura construtiva que recebeu o apoio da CDU e, do FDP que denunciou o acordo prévio com o SPD. Helmut Kohl tornou-se então chanceler. Primeiro comentário : o sucesso duma tal moção implica necessariamente uma traição do voto popular dado que o SPD era o partido que tinha obtido mais deputados e votos nas eleições anteriores. Este mecanismo é antidemocrático, favoriza os pequenos acordos entre partidos, reforçando ainda mais a “partitocrazia”.

Sem esquecer o deslumbramento tecnológico pela engenharia constitucional, bem presente nas antepropostas do PSD que vieram a público, o maior argumento em favor da introdução deste mecanismo em Portugal é o aumento da estabilidade política. Argumento que aliás amálgama estabilidade governamental e estabilidade parlamentar : é possível conceber uma legislatura com n governos onde n tende para o infinito com o Parlamento a durar quatro anos (ou cinco anos, caso a duração da legislatura seja modificada), tal possibilidade não é certamente mais estável que uma dissolução eventual após uma moção simples.

Mais quanto à estabilidade política, o exemplo alemão é o contra-exemplo : consciente da sua falta de legitimidade e da falta de democraticidade da sua chegada ao poder, Helmut Kohl fez o necessário – intrujando aliás o espírito senão a letra da lei fundamental alemã – para que houvesse novas eleições legislativas, que ganhou. Consequentemente o argumento da maior estabilidade política é pouco ou nada valido do ponto de vista comparativo.

Acrescenta-se que, em Portugal, desde a civilização do poder político, só uma legislatura e um governo não chegaram ao fim natural por causa de uma moção de censura. Até agora, a moção de censura construtiva teria sido pouco útil. Melhor, se tal mecanismo tivesse existido em 1987, pode-se imaginar que o PSD e Aníbal Cavaco Silva nunca teriam obtido a maioria absoluta : se o PRD tivesse apresentado uma moção, significaria ter tido um entendimento prévio com o PS ; entendimento impedido por Mário Soares pela sua decisão de dissolução.

Do ponto vista técnico : na Alemanha, a moção de censura enquadra-se num ordenamento constitucional complexo. Ela não pode ser lida sem ter em conta outras disposições, tais como : a eleição do chanceler pelo Bundestag, a impossibilidade de dissolução discricionária e mesmo o sistema eleitoral misto (aliás outra serpente de mar político-constitucional em terras lusas). Nenhuma destas disposições existem ou estão programadas em Portugal. Em consequência a adopção da moção de censura construtiva “em seco” introduziria inconsequências na CRP. A mais importante seria o mecanismo diferenciado de formação governamental entre depois de eleições parlamentares e após uma moção de censura construtiva.

Se como no anteprojecto do PSD, ela for introduzida sem apagar o actual dispositivo de moção de censura, será ainda mais inútil : tendo um custo político mais elevado que a moção simples, isto é a necessidade de um acordo para formar um novo governo, ela nunca será utilizada.

Se como já constou em anteriores propostas, ela for introduzida com a possibilidade do PR recusar a nomeação do novo governo, possibilidade que não existe na Alemanha, a moção de censura seria ou inútil ou factor de maior instabilidade política. Inútil, porque o actual ordenamento constitucional português permite ao PR de não dissolver após uma moção e favorecer a emergência de um novo governo. Factor de maior instabilidade política, porque a recusa presidencial significaria necessariamente uma dissolução contra-maioritária. Quer num caso quer noutro, uma tal introdução seria contraproducente nomeadamente em relação ao argumento da “maior estabilidade política”.

Historicamente, a moção de censura construtiva foi sempre, em Portugal, uma proposta para indirectamente enfraquecer o PR. Nesse sentido, podemo-nos relembrar das propostas de Sá Carneiro e do PS contra a presidência Eanes em 1982. Devido ao que já foi dito, a actual proposta “em seco” não foge a esta finalidade indirecta, ainda mais se a introdução acabar por ser tecnicamente coerente.

Do ponto vista político-partidário, mas além das inclinações pessoais, só me falta partilhar a minha surpresa quando a proposta de moção de censura construtiva tem origem no PSD. A moção de censura construtiva só pode ser utilizada com sucesso no caso de um governo de coligação ou de um governo minoritário. Ora o PS tem mais possibilidades de coligação de que o PSD. A moção de censura construtiva terá como consequência um favorecimento do PS no acesso ao poder governamental : contrariamente ao nosso partido, salvo hipótese de “bloco central”, o PS pode-se aliar à esquerda mas também com o CDS/PP. Aliás na eventualidade da introdução da moção de censura construtiva em Portugal, ela poderá constituir um forte incentivo para o PP voltar às suas origens de CDS : um queijo Limiano institucionalizado. Mesmo sem esta evolução do CDS/PP, é também possível imaginar a emergência de um novo partido ao centro do espectro político com função de charneira, que, se enfraquecerá os dois maiores partidos dos quais o PS, aumentará a fragmentação parlamentar e em consequência a instabilidade política.

Como facilmente percebeu, sou extremamente crítico quanto à eventual inscrição da moção de censura construtiva na nossa lei fundamental. Espero que a argumentação apresentada neste email não usurpe as palavras com que intitula um dos livros da sua autoria : Quod Erat Demonstrandum.

(Paulo José Canelas Rapaz)

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© José Pacheco Pereira
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