ABRUPTO |
![]() semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
|
5.7.10
![]() ERUDIÇÕES (François Bonvin) A erudição é definida pelo Webster como "extensive knowledge acquired chiefly from books: profound, recondite, or bookish learning". Escolhi uma definição de dicionário americano, porque os americanos são muito matter of fact nestas coisas e vão ao cerne da questão sem delongas. Ou seja, escolhi o menos erudito dos dicionários para começar a falar de erudição.Trabalhando no Oxford English Dicitionary. O conhecimento "aprendido dos livros", elemento fundamental de toda a erudição, não está propriamente no top de coisa nenhuma. A erudição é hoje um completo anacronismo e é vista como uma coisa obsoleta, inútil, desligada da realidade, oposta ao verdadeiro saber e um obstáculo a esse mesmo saber. Como em tudo, a erudição tem os seus excessos de pormenor e detalhe tão cheios de pulsão fractal, que Mandelbrot reconheceria como uma forma especial de matemática. Jorge Luis Borges, que era não só um erudito como um amador de erudição, um entusiasta da erudição e o grande ficcionista da erudição, retratou na sua loucura de mansarda ou biblioteca, caverna ou gabinete, com personagens que se consumiam dia a dia à procura de uma qualquer perfeição totalitária impossível de atingir. Pierre Menard, o autor do Quixote, é talvez o mais fabuloso retrato borgeano dessa procura de absoluto que acaba por resultar num Quixote em tudo idêntico ao original, mas "melhor". O sonho de absoluto que anima toda a erudição, saber tudo sobre tudo, é no fundo vão, mas nunca ninguém viu um genuíno erudito desistir, a não ser pela loucura. Loucura mansa de um modo geral, por isso os eruditos vivem no meio de nós como uma espécie em extinção. ![]() ![]() (Recibo de compra de livros por Inocêncio Francisco da Silva. Quer Inocêncio quer Brito Aranha, que continuou os seus trabalhos, eram essencialmente autodidactas, fizeram as suas obras fora da Universidade e no essencial com os recursos do seu próprio bolso.) Meia dúzia de cultores portugueses continua essa velha tradição, acantonada num cada vez maior isolamento, quando não incompreensão, em áreas do saber mais ou menos arcanas e que nunca chegam aos holofotes dos média. Felizmente para elas, mas infelizmente para os que, por desconhecerem o que se passa nesses ambientes "dos livros", ignoram também a riqueza do que lá está. Três casos são exemplares dessa pulsão do erudito pela sua forma peculiar de saber e dos meios onde ele sobrevive, com a força de ser... saber. Um é o de José de Pina Martins, um bibliófilo recentemente falecido, um dos maiores especialistas mundiais em Pico della Mirandola, e no humanismo renascentista, de Erasmo, e Thomas Moore. Pico della Mirandola tinha aliás a fama de ser o último homem do mundo que sabia tudo, um verdadeiro patrono para os eruditos. Pina Martins conhecia a edição renascentista livro a livro e, quando digo livro a livro, era mesmo assim. Olhava para eles e sabia tudo, quem o fizera, onde fora editado, e, mais importante, se era qualquer variante até então desconhecida, qualquer edição ignorada de alguns dos seus maiores ou menores renascentistas. ![]() Aliás, outro autor que irritava muitos era Vasco de Magalhães Vilhena, que colocava notas em grego (o que ainda pareceria justificável para um dos maiores especialistas em Sócrates) , a que acrescentava notas em russo, a que não era alheio o facto de ser comunista, mas confrontando os seus adversários, como António Sérgio, com um mundo que eles não dominavam. Era também maldade, mas no erudito a soberba é uma permanente ameaça. Por último, para elogio e divulgação da erudição contemporânea em Portugal, há o projecto da Classica Digitalia, da Universidade de Coimbra . Poucas áreas existem que mais perderam com a progressiva desaparição da componente humanística do saber nos curricula académicos do que os estudos clássicos. O conhecimento do grego e do latim, que eram até há algum tempo condição sine qua non para se "entrar" em Filosofia (no meu tempo, era o Alemão para o Direito e o Grego para a Filosofia, isto no liceu, sim no liceu...), são hoje meras opções facultativas que atraem apenas uma minoria de uma minoria. O corte com as línguas clássicas empobreceu significativamente todo o conhecimento clássico, mesmo quando aumentou o número de traduções de qualidade de textos antigos. Depois venham dizer-me que isto está ultrapassado. (Versão do Público de 3 de Julho de 2010.) (url)
© José Pacheco Pereira
|