ABRUPTO

29.6.10


VIAGEM PELA EUROPA DISFUNCIONAL



Quando acabei de escrever este título, pensei logo em variantes mais certeiras. Por exemplo, "Viagem pela Europa ainda mais disfuncional do que o resto da Europa", seria mais exacto. "Viagem pelos Balcãs" seria a mesma coisa. "Viagem pelas fronteiras" (do cristianismo e do Islão), igualmente, seria a mesma coisa. Por aí adiante.


Mitrovica.

Ando pelos Balcãs. É uma boa continuidade depois da Comissão de Inquérito da TVI, guerra por guerra. Que países visitei? Depende do que considerarmos país. Na verdade, nenhum, porque nenhum é um verdadeiro país, mas os restos da Jugoslávia e de mais de seiscentos anos de história, depois da queda de Constantinopla. As cidades servem. Estive em Pristina [na foto] e Mitrovica, ambas na antiga província jugoslava do Kosovo e escrevo de Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, num velho hotel austro-húngaro com mais de 130 anos de história. Apropriado para pensar estas coisas. Em Pristina, o coração é albanês e, se não fosse parte do acordo que permitiu o acto de independência, seria à Albânia que se teria juntado o Kosovo do Sul. Mas, se o Kosovo é formalmente independente, reconhecido por 70 países, não o é por outros 70, nem pela ONU, com a oposição da Rússia, aliada da Sérvia. Mais, se o Kosovo é um país, então na parte do Kosovo do Norte, a partir de Mitrovica e envolvendo as províncias fronteiriças, quem manda é a Sérvia. Na cidade de Mitrovica está um retrato dos Balcãs: no Sul, flutuam bandeiras albanesas (mais do que do Kosovo) e, no Norte, passando a famosa ponte, estamos na Sérvia. As ruas estão pejadas de propaganda política das eleições sérvias, em que esta parte da cidade participa, as inscrições são em cirílico, fala-se servo-croata e não albanês. Não há mesquitas, só igrejas ortodoxas, incluindo uma nova em folha para substituir outra que foi destruída nos confrontos de há dez anos. O hospital e muitas das despesas da cidade são pagos por Belgrado. Ninguém paga um tostão de imposto ao Governo de Pristina, nem, aliás, a nenhum Governo, porque isto é o Faroeste, parece Deadwood. Não há polícia regular, há uma espécie de milícia sem uniforme que responde ao presidente da câmara e que ninguém controla. Só por curiosidade, há dois presidentes da mesma câmara, mas isso é uma rotina nos Balcãs. Nas ruas, manda quem tem mais força. Tudo quanto é ilegal encontra guarida no Norte do Kosovo: contrabando, drogas, tráfico de pessoas, cortes de madeira ilegais, roubo de propriedades, assassinatos. Por singular coincidência, os grupos criminosos que aqui actuam são multiétnicos, sérvios e albaneses em boa colaboração.

Mas as coisas não ficam por aqui: ainda faltam os roma, ciganos que ocupavam uma parte altamente poluída da cidade e que foram deslocados para umas torres onde têm medo de estar. As torres são modernas e parece que alguns sérvios genuínos se inscreveram como roma para irem para lá. Depois, há a Pequena Bósnia, o bairro dos bósnios, e ainda faltam os ashkali e os "egípcios", tudo minorias protegidas pelo braço armado da OTAN. Os roma são pró-sérvios, os ashkali são pró-albaneses.



Ponte Austerlitz que separa Mitrovica Norte (de maioria sérvia), do Sul (de maioria albanesa). A ponte é um local habitual de confrontos.

Tudo isto é o Kosovo, um protectorado da União Europeia, protegido por uma força internacional, a KFOR e, na verdade, governado por uma série de organizações internacionais, ONU, OTAN, ICO, OESCE, UNMIC, EULEX, etc., cheias de pessoal, e que se atropelam umas às outras. Todas são "neutrais" quanto ao status do Kosovo, até porque delas fazem parte países que não reconhecem a independência, mas na prática estão a ajudar a criar um estado que só tem sentido se for independente e, para o ser, precisa de ter soberania no conjunto do seu território, o que ninguém sabe como conseguir a não ser à força.

Depois, há a Bósnia. Três presidentes, dezenas e dezenas de ministros de vários governos que não se reconhecem uns aos outros. Uma federação e uma república que dela não faz parte e um território autónomo, a província de Brcko. Na verdade, dois países num só, a Bósnia e a Herzegovina, de maioria muçulmana, e a República Serspka, um cantinho da Sérvia, autogerido, com independência, que abraça de norte a sul a federação do lado da fronteira. Hoje, era suposto ter ido a Banja Luka, a sua capital, quando, à última hora, o helicóptero teve problemas de turbulência acima do limiar de segurança e toca de voltar para trás. Não sei de onde veio a turbulência, mas duvido que o Governo da Bósnia gostasse de ver gente da OTAN em Banja Luka a falar com o Presidente Rajko Kuzmanovic. Turbulência é que não falta nos Balcãs, mas a parte atmosférica é bem menor do que a que existe no solo.

Podia continuar, porque em cada metro de terra dos Balcãs está inscrita uma variante da maldição que o Príncipe Lazar proferiu contra os sérvios que não o acompanharam na batalha de Kosovo contra o Sultão Murad: "Que nunca tenhas os filhos que desejas! Nem filhos nem filhas! Que nada cresça na terra que a tua mão arar! Nem o escuro vinho, nem o branco pão! E que sejas amaldiçoado pelos tempos fora!". Murad e Lazar morreram na batalha, ganha pelos muçulmanos, mas em que os sérvios consideram ter salvo a Europa com o seu sangue. Há um monumento com esta inscrição, um horroroso monólito rodeado de canos de cimento, feito nos anos cinquenta, e que continua lá, protegido pela KFOR e pela polícia do Kosovo para não ser destruído pelos filhos tardios de alguns dos soldados de Murad, e que foi o escolhido por Milosevic para um comício com um milhão de sérvios a caminho do seu apogeu nacionalista e da guerra civil.

Monumento nos arredores de Pristina.



Acabaram as guerras balcânicas? Para já, sim. E acabaram porque estrangeiros, desde americanos a finlandeses, de portugueses a italianos, de gregos a suecos, estão nos Balcãs com um braço armado, depois de terem tido também que combater uma guerra desigual e, num certo sentido, injusta, quando percebida como sendo contra os sérvios. Os sérvios cometeram todas as violências e massacres como os de Srebrenica, mas uma das maiores limpezas étnicas nos Balcãs foi dos sérvios da Krajina e os criminosos de guerra são croatas, bósnios e sérvios. Só que os primeiros ganharam, os segundos ficaram empatados e os últimos perderam. E é esse status quo que ainda hoje está por estas bandas.

A "disfunção" que ataca os Balcãs é demasiado humana para não a reconhecermos: é a religião como identidade política e memória a mais. Estas forças moldaram os Balcãs (e o Cáucaso) com mais profundidade do que no resto da Europa, onde também estiveram presentes e provocaram guerras que deixam as dos Balcãs no jardim infantil. Mas ali não se dissipam e as lutas de fronteira das religiões e, correndo o risco de ser chamado huntingtoniano, de civilização, marcam uma história real, imaginária, construída, mítica, seja lá o que for, mas inscrita a ferro e fogo na cabeça e no corpo das pessoas.



Vilas e aldeias no Norte do Kosovo que não é controlado pelo governo de Pristina e onde não existem lei nem ordem (visto de helicóptero).

E, no entanto, tudo parece tão normal visto do ar. Campos cultivados, casas de camponeses, animais de carga, montes de feno, cafés, lojas, roupa de feira, muito pequeno comércio, bancos recentes, edifícios de regime, fábricas e minas à Magnitogorsk, imensas e poluidoras, milhões de jovens nas ruas, barbeiros, sapateiros de porta aberta, bares com ladies day e narguilé, futebol nos ecrãs, tudo comum, tudo normal. Parece Portugal, um pouco mais pobre, mas só um pouco. E depois, olhando bem, aqueles mesmos velhos andaram na guerrilha em 1944 e em 1990, os seus filhos andaram em milícias a matar os seus vizinhos, quando eram iguaizinhos aos seus filhos de ténis e calças de ganga que enchem os cafés e esplanadas de Sarajevo e Pristina. Há muito tempo? Não, há dez anos.

(Versão do Público de 26 de Junho de 2010.)

(url)

© José Pacheco Pereira
Site Meter [Powered by Blogger]