ABRUPTO

9.6.10


O TRATADO DE LISBOA COMO PAPEL PINTADO



Para quem, já há alguns anos, tem escrito sobre a crise do processo europeu, a situação crítica actual da Europa não me espanta. Não há felicidade para ninguém neste acertar, mas os críticos do processo que se iniciou com a chamada Constituição Europeia e que culminou no tratado salvífico de Lisboa tinham toda a razão e os euro-entusiastas, bem pelo contrário, não tinham razão nenhuma.

Mas, como é costume, nada aprenderam da sucessão de falhanços a que conduziram o projecto europeu, que se encontra no limiar da extinção quando mais preciso é, e querem de novo aplicar o mesmo veneno a que puseram o rótulo de remédio. Essa medicina aplicada por um médico louco, que nada sabe de história, nem da política enquanto relação de poder, dominado por ideias feitas de utopismo vulgar e de desejo olimpiano de um Paraíso na terra, cheio desta pressa insensata e imprudente que tomam por "progressismo", é a de pretenderem mais um upgrade político da Europa. Não aprenderam nada com o fracasso da mesma repetida tentativa de engenharia política abstracta, que tirou toda a força a um projecto que os seus fundadores sabiam só poder ser feito de "pequenos passos", entre países unidos pelos seus interesses comuns e por uma igualdade virtual, mas que funcionava como virtuosa.

Com a Constituição quiseram fazer um proto-país, com hino e bandeira, que, como não era desejado nem pelos povos, nem verdadeiramente por muitos governos, acabou às mãos de um diligente canalizador polaco. Com o Tratado de Nice assustaram-se porque apareceu à luz do dia (e da longa noite de deliberações) a incongruência do upgrade, mas os euro-entusiastas, em vez de ponderarem sobre a tenacidade dos factos e da realidade, quiseram ultrapassá-la com dolo. O Tratado de Lisboa foi o melhor exemplo desse dolo, reconstruindo de forma disfarçada a Constituição chumbada em referendos e utilizando diversas artimanhas para não correr o risco de novo chumbo. Um documento assim feito não resiste à primeira crise a sério, porque o dolo não sobrevive aos problemas que ele pretendia iludir. E a situação actual mostra como, apesar das múltiplas fanfarras, declarações, pressões sobre os recalcitrantes, fogo-de-artifício, assinaturas colectivas em cenários feéricos, discursos inflamados e um "porreiro pá", a Europa que finalmente, na voz dos seus propagandistas, acabava de ser dotada de um "governo" capaz e de mecanismos de eficácia assentes em maiorias e minorias, se mostrou completamente impotente para lidar com uma crise económica, social e financeira que estava "escrita nas estrelas". O Tratado de Lisboa foi a mais completa inexistência desta crise. Ninguém o invocou, ninguém o utilizou, ninguém sequer reparou que ele existia. Apenas papel pintado com letras.

Os que clamam agora por um governo europeu - mais um upgrade neste caso vindo dos que ficaram na situação de estender a mão à Alemanha - têm, a seu favor, pelo menos algum realismo, visto que estão a propor o que já há. Fazem-no no desespero de serem deixados apenas aos inúteis mecanismos do Tratado de Lisboa, que não os protegem se ninguém estiver disposto a pagar a factura dos seus erros e incompetências e de viverem há tempo de mais acima das suas posses. Aflitos com o facto de terem que pagar sozinhos os excessos que cometeram, agarram-se agora a um governo europeu que pensam lhes dará protecção in extremis e lhes permitirá manter os vícios, como uma província pobre do império a que se permite viver mediocremente do orçamento da capital e do Norte industrial.

Só que, a haver um governo europeu, ele será alemão e parece pouco provável que a Alemanha continue disposta a ter o papel de pagar eternas reparações de guerra sob forma de contribuições líquidas para o orçamento comunitário, mais a pagar as Grécias que existem na Europa, e a arrastar com custos para a sua economia e para o bem-estar material dos seus concidadãos, com origem numa periferia que tudo recebeu e que quase tudo desaproveitou. Teve a sua oportunidade e atirou-a às malvas do consumo e da megalomania dos governos. Não se reformou, não se reestruturou, e abandonou qualquer ideia de esforço a favor do consumo imediato. De europeu só teve expectativas elevadas de consumo, nenhuma exigência de rigor e de trabalho. Isso ficou para os boches comedores de salsichas e que se levantam às 6 da manhã. É por isso que os euro-entusiastas clamam contra a "traição de Angela Merkel", contra a sua "mesquinhez" e "falta de arrojo europeu", como se a riqueza alemã fosse o poço sem fundo da falência das várias Grécias que por aí andam.

Está pois tudo num impasse e num impasse perigoso. Esse impasse é estrutural, visto que por detrás da "crise mundial" que só se "vive uma vez na vida", está na Europa a crise há muito anunciada do chamado "modelo social". A Europa já há muito que estava a deixar de ser competitiva, com uma mão-de-obra com salários e garantias desproporcionados em relação à situação de uma economia globalizada, uma Europa que colectivamente gasta o grosso do seu orçamento a manter uma agricultura subsidiada e irracional na sua produção, ao mesmo tempo que fecha as suas portas ao comércio livre de produtos agrícolas, uma Europa governada cada vez mais por uma burocracia sediada em Bruxelas que se alimenta a si própria na melhor tradição da Lei de Parkinson, e que acha que os parlamentos nacionais são um obstáculo ao "progresso" iluminista que ela própria representa. Uma Europa onde a demografia criará uma sociedade de velhos que não sustentará a segurança social dos que hoje lhes pagam as reformas. Uma Europa impotente internacionalmente, sem defesa e insegura, em que todas as piores ideias se disfarçam de grandes palavras francesas e de retórica plangente dos aflitos que viram o mundo mudar nos últimos quinze dias.

Não sabemos o que fazer? Sabemos, sabemos até muito bem. Mas como isso significa tanta mudança profunda, tanta inversão nas relações de poder, num contexto de empobrecimento real e sem esperança viável para pelo menos uma década, que mais vale continuar a retórica e esperar por um milagre. Até um dia.

(Versão do Público de 5 de Junho de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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