ABRUPTO

10.5.10


POR UM PARLAMENTO ASSENTE NO ESCRUTÍNIO DA GOVERNAÇÃO

O Parlamento português está a conhecer uma fase muito particular da sua história, que tanto pode ser transitória e desaparecer, como consolidar-se com vantagem para a representação política dos portugueses na sua mais mal-amada instituição eleita, mas também na mais democrática de todas. Se calhar, uma coisa e outra estão intimamente relacionadas.

Refiro-me ao reforço da capacidade de escrutínio da governação pelo Parlamento, em detrimento do papel mais clássico da produção legislativa. Quando eu digo que pode ser transitória, digo-o porque esse incremento do escrutínio e vigilância política à governação se tornou possível por não haver maioria absoluta e pode desaparecer quando outra maioria existir, tornando conjuntural aquilo que devia ser estrutural. Cabe aos actuais parlamentares criar as condições para que se efectuem as mudanças necessárias, quer no regimento, quer na Constituição, que permitam essa modernização de que o Parlamento tão necessita.

Se olharmos para a actividade parlamentar que tem hoje mais impacto na opinião pública e que mais interesse suscita nos portugueses, ela centra-se na actividade das comissões de inquérito e nalgumas audições parlamentares realizadas nas comissões. Até o Canal Parlamento, uma televisão "institucional" perdida no cabo, que tinha apenas audiências mais que residuais, deu um salto e é acompanhado por muitos portugueses pela primeira vez. Do mesmo modo, estações privadas têm transmitido em directo actividades parlamentares que nunca sonharam passar por não terem audiências. Agora têm.

Como deve ser num Parlamento moderno, o grosso da visibilidade do trabalho deslocou-se para as comissões mais especializadas, em detrimento do plenário, e um dos arcaísmos que devem ser corrigidos é o excessivo tempo gasto por semana no plenário, enquanto as comissões dispõe apenas de um dia para se reunirem. É verdade que os partidos mais pequenos, muito centrados numa actividade tribunícia, defendem os vários dias de plenário por semana, mas é muitas vezes deprimente ver aquele enorme salão artificialmente ocupado para encher o tempo com declarações políticas sucessivas, meramente declarativas e retóricas e pela discussão de legislação muito especializada, que podia bem ser discutida e aprovada, pelo menos preliminarmente, em comissão.

Pelo contrário, actualmente passam pelas comissões especializadas e pelas comissões de inquérito alguns dos mais importantes assuntos em que se exige um esclarecimento maior do Governo, este e o anterior. É o caso da questão das contrapartidas na compra de material militar (na Comissão de Defesa Nacional), das condições em que foi escolhido e pago o computador Magalhães (na comissão de inquérito sobre a Fundação das Comunicações Móveis), as medidas a tomar contra a corrupção (numa comissão eventual), o estado da liberdade de imprensa e informação (na Comissão de Ética), e o inquérito sobre as tentativas de compra da TVI, sua eventual condução política e o comportamento do primeiro-ministro no Parlamento. Refiro-me apenas aos trabalhos que melhor conheço, mas sei que, por exemplo, no âmbito do Orçamento, a unidade técnica que trabalha com a comissão respectiva produziu algumas das mais detalhadas análises desse documento fundamental. Foi também o caso, no passado próximo, do inquérito sobre a regulação do Banco de Portugal e o "caso BPN".

Se se perguntar se no futuro qualquer trabalho, académico por exemplo, sobre qualquer destas matérias, terá que consultar o que se produziu no Parlamento, seja em estudos, seja em audiências, seja em relatórios, não tenho dúvidas em afirmar que sim. Por muito que estes trabalhos possam ser "perturbados" pela turbulência da confrontação política, o que é mais que normal em liberdade, eles representam o melhor que pode fazer um Parlamento em democracia: garantir que o país conheça como é governado e, em consequência, tomar medidas que melhorem ou corrijam a governação. E os resultados, mesmo que depois sejam vertidos imperfeitamente em legislação, recomendações ou procedimentos, nem por isso deixam de constituir uma melhoria da actividade governamental, ou uma arma de pressão para a tomada de medidas, ou um esclarecimento da opinião pública com reflexos numa melhor democracia.

Muitos governantes que andavam à solta, abusando do seu poder, sendo negligentes ou incompetentes, terão motivos para pensar duas vezes em fazer algumas coisas que fizeram no passado com o maior dos à-vontades, ao verem ter que se explicar no Parlamento detalhes de negócios, decisões controversas sem fundamento legal, favorecimentos, ou pura e simples negligência e incompetência. Nenhum governador do Banco de Portugal se esquecerá do que Constâncio ouviu sobre as falhas na regulação, nenhum dos boys que andaram a montar negócios políticos e que agora se vêem obrigados a suspender as funções principescas que tinham, nenhum responsável que fechou os olhos a procedimentos mais que dúbios no Taguspark, nenhum arquitecto de esquemas para escapar a concursos públicos criando fundações fictícias, nenhum negócio "de Estado" que desperdice milhões, nenhum primeiro-ministro deixará de pensar duas vezes antes de dizer o que mais lhe convém a uma casa que tratam como amorfa ou, pior, com sobranceria. Como muitas vezes disse: uma boa democracia é aquela em que um governante teme mais o seu Parlamento do que os jornais do dia seguinte.

É fácil ao populismo demagógico anti-parlamentar desprezar esta actividade, por razões que incluem a nossa salazarista aversão ao conflito político e partidário. É fácil o discurso de quem preferia governar sem baías desvalorizar o escrutínio parlamentar, acusando-o de ser uma distracção daquilo que é "importante para o país". Não é uma observação desinteressada, vinda de quem não quer explicar com clareza o que fez e tem um enorme incómodo em ser escrutinado. É fácil a uma comunicação social sobranceira e ignorante "gozar" com as comissões de inquérito, interiorizando muitas vezes os argumentos governamentais que pretendem pouco escrutínio e muita retórica. Mas, pouco a pouco, mesmo a partir de uma base pouco experiente e com erros de percurso, os méritos do escrutínio vão-se acumulando e o Parlamento cumpre a sua função principal, centralizando em si o papel de principal instituição de controlo e vigilância da governação e de debate político entre partes diferentes, o cerne da democracia.

(Versão do Público de 8 de Maio de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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