ABRUPTO

17.5.10


NÃO TÊM PÃO, COMAM BRIOCHE



A frase do título é atribuída a Maria Antonieta, ouvindo os protestos do povo por não ter pão e aconselhando-os a comerem brioche. Foi o que imediatamente comentei quando ouvi o primeiro-ministro a falar sobre o aumento do IVA do pão, do leite e da água, lembrando-nos que esse aumento também se aplicava à Coca Cola e à Pepsi Cola e que por isso os ricos, que também beneficiavam injustamente da taxa do IVA reduzida, iam ser punidos. A medida, como todas as que ele propõe, é sempre em benefício dos pobres e destina-se a rectificar injustiças sociais. Algumas das medidas são, aliás, muito favoráveis às pessoas, e às pequenas e médias empresas, que lhe deviam agradecer os aumentos do IVA, do IRC e do IRS, os cortes dos salários e dos benefícios fiscais, que Portugal só faz pelo corajoso apoio que os portugueses, liderados pelo mais sábio Governo europeu, que como sabemos é o que menos foi atingido pela crise, dão à necessidade de ajudar a salvar o euro. Quais alemães, quais franceses, quais holandeses, é Portugal que assume a linha da frente na defesa do euro, aplicando medidas que só afectam os ricos e que ajudam ao "crescimento económico". É preciso ouvir para crer, é preciso acreditar nesta reencarnação de Maria Antonieta, a dizer-nos sempre com o mesmo ar triunfante e optimista que tudo está pelo melhor dos mundos, frente às manobras dos "especuladores" que querem tirar o euro aos europeus, que conspiram a partir de algum arranha-céus americano, que escaparam ao fascínio de Obama, para obrigarem os portuguesinhos valentes a irem salvar o euro. É já tudo, tudo, um pouco tresloucado, mas é o que temos.

Deixemos Maria Antonieta e os ínvios caminhos da metempsicose, para voltar a ter os pés na terra, na terra movediça em que estamos pousados. Entre as muitas coisas que falta dizer aos portugueses - e tantas faltam! - está a que, neste momento, Portugal não é um país independente. Os cépticos dirão que já era assim antes, mas até eles admitirão que, pelo menos, ainda tínhamos intacta a nossa capacidade para fazer grandes asneiras. Agora continuamos a manter alguma capacidade para fazer asneiras, mas levamos logo com a palmatória. Ao que chegámos! Hoje o ministro das Finanças vai a Bruxelas, aflito porque tem que daqui a dias pedir emprestados mais uns milhões para pagar uns outros milhões aos credores, que se vencem também daqui a dias. E dizem-lhe pura e simplesmente que ninguém lhes empresta mais nada, a não ser que coloque as finanças em ordem já. E, já é mesmo já. Ele regressa e prepara um "pacote", como agora se diz, mais ou menos a meio gás. E telefonam-lhe de novo a dizer que não chega. Tem que ser muito mais, muito mais duro, e a um prazo curtíssimo, senão não há dinheiro. E, corrigido o Orçamento (quem se lembra?), corrigido o PEC (quem se lembra?), vem mais um plano de austeridade. "Chega?", pergunta o ministro, em desespero de causa. Não sabemos, pode não chegar.

E cá dentro acaba a política, ou melhor, a política desloca-se para sítios mais perigosos e mais escondidos, porque a política verdadeiramente nunca acaba. Apertados por uma margem de manobra nula, desprovidos de autonomia, que é o que significa ter o país conduzido por estrangeiros, podemos ter raiva e morder a língua, mas fomos nós e só nós que nos colocámos em tal servidão. Duas pessoas na política preveniram em tempo que caminhávamos para este desastre: Manuela Ferreira Leite e Cavaco Silva. Ninguém os quis ouvir, nem Sócrates, nem Passos Coelho, nem Portas, nem a miríade de comentadores que com desprezo e comiseração diziam que eles eram os bota-abaixistas, os pessimistas, os miserabilistas, que não davam esperança aos portugueses, que tinham preconceitos contra o progresso, que eram os émulos modernos dos adversários do fontismo. É possível fazer toda uma antologia de epítetos, bem datados, sobre a ferocidade e a irresponsabilidade das reacções a quem prevenia do caminho suicidário para que o Governo caminhava e que acabou num país que não tem outro remédio senão fazer o que lhe pedem, sem cuidar de outra coisa que não sejam os resultados a muito curto prazo. O que ainda restava da nossa soberania foi-se porque os vícios nos fragilizaram tanto que tiveram que nos pôr na ordem. E, por muito que se queira meter mais gente no mesmo saco, José Sócrates foi o primeiro responsável por nos entregar a outrem, o nosso destino de servidão. Não me admira, por isso, que hajáa já quem queira um "governo europeu", ou seja, ter sem disfarce "nacional" aquilo que já existe. Governo que é bem pouco europeu porque quem manda nele é a Alemanha. Alemanha, a formiga, Portugal, a cigarra, a estação, o Inverno.

Mais cedo ou mais tarde, os portugueses vão ter que saber o que se passa. Não é certo que queiram ouvir o que é necessário dizer-lhes, e só o Presidente tem autoridade e mesmo a obrigação de o fazer. E tem a obrigação de o fazer porque, se não podemos deixar de apresentar resultados, e não tendo qualquer margem para não o fazer, sempre podemos escolher como lá chegamos, desde que cheguemos. Não é líquido que o caminho seguido pelo Governo seja o melhor, até porque o Governo tende a fazer o que sempre fez, o que é mais fácil. Ou seja: aumentar impostos já, e prometer diminuir despesas, para depois. É verdade que estamos de tal modo condicionados pela descrença internacional que sejamos capazes de convencer os nossos tutores de que a promessa de diminuir despesas seja mais do que uma promessa. Ninguém acredita e por isso querem coisas palpáveis, imediatas, que não possam ser mais um adiamento fictício.

Mas, perante a grave crise que atravessamos, sempre podíamos encontrar aí uma oportunidade para tomar medidas que, em tempos normais, nunca poderiam ser tomadas. Medidas de fundo, estruturais, como seja dar transparência aos preços dos transportes, da electricidade, dos serviços, acabar com as indemnizações compensatórias, o que é uma forma de austeridade mais sadia do que cortar salários, alterar de imediato a Constituição para acabar com a gratuitidade na saúde e na educação e concentrar os benefícios em quem realmente precisa, acabar com as centenas de milhões que pagam a máquina de propaganda do Estado, a começar pela RTP. E, a aumentar os impostos, fazê-lo com prazos definidos e associando-os à redução de despesa, tudo quantificado e com prazos. Impostos de emergência deveriam ter prazos claramente definidos associados a metas definidas que obriguem o Estado a encolher e a mudar. Aqui ainda há margem de manobra, mas tudo indica que, a continuar assim, defrontaremos a crise de modo conjuntural e de modo errado.

E, claro, subsiste um problema político: pode um Governo como o actual, um primeiro-ministro como o actual, desgastado, arrastando-se numa selva de contradições e más vontades, ter legitimidade e autoridade para estar à frente de um país que transformou num protectorado de Bruxelas? A resposta é não. Mas também aqui nos defrontamos com a nossa ineficácia. Pudéssemos nós fazer eleições como os ingleses e num mês, sem hiatos governativos, ter um novo governo em funções e isso seria imperativo. Agora, nem isso é possível. É beber o cálice até ao fim.

(Versão do Público de 17 de Maio de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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