ABRUPTO

1.5.10


COISAS DA SÁBADO: FALAR DE NADA QUANDO NÃO SE PODE FALAR DE TUDO

Os discursos do 25 de Abril na Assembleia da República são um bom exemplo do dilema que atravessa a política portuguesa: não se pode falar do que verdadeiramente interessa e tem que se falar de vacuidades ou de coisas laterais. Se se fala a verdade, há sempre o risco de os “mercados”, essa nossa Nemesis, nos caírem em cima, se se mente, idem aspas. Por isso, existe uma espécie de interdito não escrito sobre a situação do país e, por isso, fala-se de nada. É verdade que o PCP falou da situação social, e o Bloco contra o PEC, mas isso nos nossos dias é pouco mais do que nada. O PP fez o habitual discurso de tandem: eu só falo do 25 de Abril se falar do 25 de Novembro e toda a minha fúria vai para o PREC e quase nada para os quarenta e oito anos de ditadura. Um pouco desequilibrado, convenhamos. O PSD fez um discurso bizarro entre António Sardinha, Sérgio Godinho, Lenine e Rosa Luxemburgo, citada numa frase sua “de 1920” quando já estava morta desde início de 1919. Cavaco Silva, aquele de quem se poderia esperar uma eventual prevenção quanto ao curso do país, era também aquele que tinha menos liberdade de falar. Ou não. Por isso discorreu sobre os ordenados dos gestores, referindo-se indirectamente a Mexia ao descrever uma empresa que só pode ser a EDP, e depois falou sobre o mar e sobre um Porto que me pareceu demasiado abstracto e by the book. O mar é uma daquelas coisas de que se pode sempre falar sem dizer nada. Já sabemos tudo e já sabemos que fazemos muito pouco do tudo de que falamos. Quanto ao Porto, agrada-me sempre que o Presidente fale da minha terra, que tem aliás razões de queixa sólidas, mas “aquele Porto” é muito de assessor que escreve sem imaginação a partir de redacções estandardizadas sobre modernices. Como seja, está na moda falar da moda. Até uma referência presidencial ao “vanguardismo” estético lá apareceu.

Foi pena. Valia mais ter-se dito a pura e dura verdade sobre o impasse em que estamos mergulhados. Assim, o que fizemos foi, contra a nossa vontade, gritar esse mesmo impasse nos fracos discursos desse dia. Chassez le naturel, il revient au galop.

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© José Pacheco Pereira
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