ABRUPTO

18.4.10


UMA ESTABILIDADE DOENTIA



Uma paz podre caiu sobre a vida portuguesa. Um povo sem esperança não sabe muito bem o que pode esperar do futuro, mas não tem ilusões que ele não será brilhante. Uma parte dos portugueses faz de conta que nada acontece e esforça-se por "viver habitualmente", centrando-se no presente. Outra poupa mais do que o costume, quando o pode fazer. Outra vive no limiar de uma pobreza que sente vir aí. Endivida-se ainda mais para manter um estilo de vida para que já não tem posses. Cada vez mais gente teme o cataclismo da perda de emprego e cada vez mais gente perde o emprego. Como acontece sempre, meia dúzia de gente esperta ganha dinheiro, uma porque é mesmo esperta e merece o que ganha usando novas oportunidades, outra porque aproveita as circunstâncias da miséria dos outros para ganhar mais dinheiro. Nunca há só gente a perder, há sempre uma pequena minoria que ganha e nessa pequena minoria uma maioria que o faz à custa de ardis e de truques entre o eticamente inadmissível e o ilegal. Mas, como o exemplo vem de cima, nem sequer há muita censura social.

Como tudo em democracia, a política tem um grande papel. Claro que sabemos que há crise, a de fora e a de dentro, mas é sempre a política que é o seu espelho e a sua causa. A obsessão com o discurso económico faz muitas vezes pensar que a autonomia da vida económica basta para explicar a crise que atravessamos. Engano. Como todas as crises que envolvem globalmente a sociedade, a política, mesmo que sob a forma da economia política, é o elemento crucial em todos os seus momentos, no desencadear da crise, no seu evoluir e na sua conclusão. A política fez a crise internacional dos dias de hoje, a política faz a crise nacional que atravessamos. Nenhuma solução para os problemas que temos é puramente técnica, nem puramente do campo da decisão económica, entendida como mera ponderação de factores entre escassez dos recursos e a sua gestão, ou distribuição. A hegemonia de um discurso económico tecnocrático no espaço publico é apenas má política e sendo má política é também má economia.

Se formos ver os factores políticos da nossa crise encontramos a mesma paz podre, a mesma forma estranha de stasis, cheia de mal-entendidos, irrealismos, ausências, mas, acima de tudo, impotências. O sistema político e os agentes desse sistema, incluindo o eleitorado, estão bloqueados numa soma de impasses que nenhum tem força para vencer. Cada um tem um pequeno poder de conservação, nenhum tem poder de mudança. Por tudo isto, alternam-se na vida política portuguesa períodos de aparente agitação, em que parece que uma crise se pode vir a desencadear a qualquer altura, com momentos contra climáticos que merecem mais do que nunca a designação de pântano.

A oito meses de eleições entramos num destes ciclos, fechando um crescendo de aparência de crise imediata. É como se todos estivéssemos à espera de uma explosão de aceleração e de repente encalhássemos. É como estamos, encalhados. Vários factores conduziram a este pântano. O primeiro, e mais importante, é a consciência de que a nossa crise económica e financeira não é resolúvel sem enormes sacrifícios que ninguém está disposto a anunciar, e muito menos a fazer. Não vai ser a bem, nem de forma consentida. Por isso, o que os agentes políticos, neste caso o PS, estão a fazer é a comprar tempo. Se tal era possível nos últimos anos, é cada vez mais difícil fazê-lo depois da crise grega. A crise grega introduziu uma dimensão de falta de controlo, a percepção de que a nossa soberania está posta em causa e que não somos capazes de evitar que, um dia destes pela manhã, os "mercados" nos coloquem na bancarrota e na mesma situação grega de ter que pedir a protecção internacional para o descalabro. Antes da crise grega, esta hipótese parecia apenas um pesadelo catastrofista, hoje é demasiado real, demasiado possível.

Depois, o segundo factor, e um dos grandes construtores do nosso pântano, é a conjugação entre a ideia de que a justiça não é eficaz, em particular com os poderosos, ou seja, é injustiça, e a crescente indiferença popular com as maiores malfeitorias que possam ter sido feitas. As histórias escandalosas continuam a conhecer-se todos os dias, mas, como não levam a nada, não geram verdadeira indignação social, geram acomodação, amoralidade. As pessoas passaram de estar revoltadas, para ficarem indiferentes. Como já disse antes, beberam tanto veneno, que cada dose os torna mais imunes ao veneno. Esta indiferença é um dos piores sintomas da nossa doença colectiva.

Por último, há os factores propriamente políticos, em particular uma interiorização do impasse em que o país vive e a substituição de políticas alternativas, que, na actual crise, teriam que ser agressivas para criar elementos de mudança, por medidas de gestão do tempo político imediato, o que quer dizer, essencialmente do tempo político mediático. Ora o tempo mediático é o último factor de mudança, porque traduz as relações de força existentes sempre como presente inevitável e é por isso intrinsecamente conservador.

No plano da democracia, já todos perceberam que eleições no contexto actual não mudam os dados da questão e, por isso, quer PS, quer o PSD actual traduzem essa consciência de adaptação ao pântano. O PSD passou de uma reivindicação de tempo curto - Manuela Ferreira Leite tinha obrigação de ganhar "facilmente" eleições de imediato, tal era o "desgaste" de Sócrates - para um tempo cada vez mais longo, o de não "ter pressa" em novas eleições. Por seu lado, o PS parece ter abandonado a estratégia com que saíra das eleições - provocar de imediato novas eleições ao mais pequeno pretexto - para uma acomodação a um ciclo mais longo, até pela consciência de que novas eleições estão cada vez mais longe de lhe dar nova maioria absoluta. Ambos os partidos fecharam um ciclo pós-legislativas, em grande parte porque foram obrigados. Não é impossível por isso que possa haver um ciclo político mais longo, mesmo de legislatura.

Existem elementos de volatilidade nesta situação pantanosa? Existem e muitos. Há perturbações, mesmo no estrito domínio do político, como sejam as eleições presidenciais. Mas os principais elementos são muito mais de fundo: um é a situação internacional de Portugal no contexto da nova situação criada pela "crise grega", outro é a conflitualidade social e, por último, a permanente tendência do primeiro-ministro para estar envolvido em histórias obscuras que até agora acabaram bem para ele e mal para a sanidade do país, mas que também podem um dia acabar mal. Queiram ou não os agentes políticos "não atacar pessoalmente" o primeiro-ministro (não é isso, mas não vale a pena estar a explicar o que toda a gente entende), este encarrega-se de aparecer na cauda de tudo o que é perverso em Portugal, Freeport, Face Oculta, Taguspark, etc., etc.

Por isso, mesmo que num pântano, mesmo que numa falsa estabilidade, mesmo que ninguém o deseje, mesmo que as águas pareçam tão mortas que nada mexe na massa viscosa do presente, está lá suficiente metano para irmos todos pelos ares sem pré-aviso. Insisto: sem pré-aviso.

(Versão do Público de 17 de Abril de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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