ABRUPTO

26.4.10


REDE DE MENTIRAS



During times of universal deceit, telling the truth becomes a revolutionary act

(George Orwell)

Na minha cabeça a expressão melhor é em inglês: a web of lies. Não é nada de original, há livros e presumo que um filme com o mesmo título. Não verifiquei. A web of lies, uma rede de mentiras, uma trama de mentiras, uma selva de mentiras, um emaranhado de mentiras entrelaçadas umas nas outras, um network de mentiras, seja lá o que for, chamem-lhe lá o que quiserem. É assim que Portugal está, apanhado, preso numa rede de mentiras, tecida como se uma multidão de aranhas o mumificasse numa teia para lhe sugar o último dos fluidos e o deixar ali, seco e desfeito, ao vento, até se tornar o pó, de onde todos viemos e para onde todos vamos. Mas a teia nunca esteve tão densa.

O economista estrangeiro que nos pressagiou a bancarrota, provocando a indignação nacionalista que, da direita à esquerda, temos sempre latente entre nós, disse que estávamos num "estado de negação". Claro que estamos, mas talvez seja pior do que isso, seja a prisão interior num universo feito de tanta mentira que já não sabemos viver doutra maneira, já somos parte de uma mentira tão entrelaçada com as outras que não conseguimos ter sentido nem direcção. Isto das redes é muito moderno, mas as redes não têm direcção, nelas não passa um sentido, uma hierarquia. A "inteligência das multidões" é muito bonita, mas é para vender produtos, não é para construir sentido, porque as "multidões" só são capazes de sentido quando deixam de o ser. A democracia não é o país das "multidões" que vivem na demagogia e nunca o reino da mentira, o principal dissolvente social, se institucionalizou como um hábito, um quotidiano, uma respiração. Não é só enganados e querendo ser enganados, é também enganando. Enganando, vivendo num trem de vida sem meios para o pagar. Vivendo no engano da dívida que será o absoluto acordar para os que terão que o pagar. Vivendo num presente de distracções adiando para o futuro a factura. Cada crédito pessoal para comprar uma viagem às Caraíbas, ou um novo plasma, é o sinal da nossa mentira. O tal estado de negação. A web of lies.

Claro que não é só por cá, em muitos sítios é assim, porque a mentira está bastante distribuída, quase como o bom senso cartesiano. Mas por cá a coisa é demais e, como sempre acontece, o exemplo vem de cima. Vem do Governo, embora, sejamos justos, não de todo o Governo na mesma maneira. O ministro das Finanças, esse, leva todos os dias com uma dose de realidade tão forte que não pode sonhar muito. Mas o resto do Governo está ali a participar numa mentira colectiva: a de que há governo em Portugal. Cada casa tem o nome de ministério, e há alguma azáfama lá dentro, mas é uma agitação abaixo de zero, inútil. Não há dinheiro e há vícios. Funciona-se por rotina e pompa, mas em cada uma daquelas casas pouco mais há do que a mais corrente das gestões. Os porteiros podiam fazer de ministros que não se dava por ela.

E o primeiro, esse então produz rede como uma activa obreira aracnídea. Saltita de inauguração para inauguração, de obras que não se lhe devem ou que, pior ainda, se devem a dinheiro público que circula para as "empresas do regime", ou que são empreendimentos decididos sem estudos, nem cuidados, para honra e glória das suas obsessões e deslumbramentos, pujante de optimismo, dizendo sempre que nós somos os melhores em tudo, os nossos projectos estão "na vanguarda", que a crise onde os outros vegetam, cá, por sua excelsa direcção, é menor, está ultrapassada, acabou. A web of lies.

E define-se assim um padrão pelo qual os de cima, muitos dos quais rapaces como um falcão, que sabem muito bem o que fazem, dão cada passo com uma sólida protecção que nenhum governante, nem político, por poderoso que seja, nem é capaz de imaginar ter. Estão protegidos de uma justiça que não funciona, são protegidos por uma comunicação social que os teme ou admira, e corrompem barato e caro, no circuito da grande venalidade ou no do pequeno suborno. Olha-se para muita gente da nossa elite e por entre os cuidados fatos de pin stripes, das mãos arranjadas até ao osso, do cabelo certo, do equilíbrio polido que transpira o muito dinheiro, do tom de voz entre o macio e o firme, da falsa segurança que dá o status e muito mediatraining, da película de vaga arrogância natural no vencedor, do decisor profissional, capaz, inteligente, habilidoso, sem dúvidas metafísicas nem hesitações, e não se vê a cupidez e a amoralidade. Depois, quando têm um sobressalto inesperado, nem que seja pelo facto de o caos gerar de vez em quando algo que parece ordem, respondem com o maior dos à-vontades, como se nada fosse, com completo desprezo pela possibilidade sequer de que haja um átomo de lucidez alheia, de uma escassa que seja inteligência, que perceba que a história é inverosímil, mentira sobre mentira, o jogo de palavras, a pequena habilidade dialéctica de quem sabe, no alto do seu mundo, que todas as cumplicidades se protegem, que todos os interesses se unem nessa mesma teia de mentiras. A web of lies.

Nestes dias de "estado de negação" tenho tido um curso intensivo deste estado de coisas, o que deve fazer parte de alguma penitência infernal que pago com antecedência. Só que este clima de manhas, hipocrisias, ambições e mentiras está a tornar-me moralista, o que é uma maçada...

(Versão do Público de 24 de Abril de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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