ABRUPTO

12.4.10


DESLAÇAMENTO



Quando, há já umas semanas, ouvi um deputado do PCP, José Soeiro, subir à tribuna para falar da luta dos mineiros de Neves Corvo, em Castro Verde, senti uma forte sensação de irrealidade, uma espécie de distância imensa entre tudo e tudo, o deslaçamento enorme que Portugal atravessa, sem direcção nem destino. A pergunta que se me atravessou - e atravessou é o termo mais exacto - era: mas quem é que quer saber dos mineiros de Neves Corvo para alguma coisa? Mas a pergunta atravessada era na realidade outra: mas quem é que aqui, nesta sala, quer saber dos mineiros de Neves Corvo para alguma coisa?

Podia-se dizer que os comunistas querem, mas mesmo nesse sentido seria possível desvalorizar esse "querer". No fundo, o que se passava era a mais estandardizada das situações. Um deputado comunista alentejano, a falar de trabalhadores alentejanos, que são na sua maioria seus eleitores, e a enunciar uma clássica reivindicação sindical defendida por um sindicato que é também constituído na sua maioria por comunistas. Estava a fazer o que é normal, o que se espera, o mesmo que fazem os deputados algarvios que querem que se consumam mais laranjas do Algarve, ou os de Viseu que não querem encerrar um posto de saúde. Era política "local", aquela que os americanos dizem ser "toda a política". E era uma função clássica de representação do "seu" eleitorado: os comunistas falam para o "seu" Alentejo, como os deputados da Madeira e dos Açores falam para os madeirenses ou os açorianos.


Mas não era só isso. Havia uma diferença. E de novo a pergunta atravessada passou para outra expressão, muito mais atravessada, essa sim também muito mais complicada porque já caminhava para fora da pergunta, para uma resposta: por que razão nós falhamos a estes homens, nós falhamos aos portugueses como os mineiros de Neves Corvo, que mais do que quaisquer outros precisam de bom governo, porque são os mais frágeis, os primeiros a pagar os custos das asneiras que são cometidas lá longe, em Lisboa, num outro mundo tão distante do Alentejo como a Lua. O pano de fundo das perguntas atravessadas é a, para mim, clara e evidente percepção da enorme, gigantesca indiferença com que olhamos para estes homens, os mineiros de Neves Corvo. Eles não são mais do que uma longínqua perturbação noticiosa na sua greve (entretanto suspensa), a que na Assembleia reagimos com total desatenção. É quando muito uma coisa para os comunistas (verdade seja que Cavaco Silva, que não renega as suas origens sociais, os recebeu), ou uma excrescência anacrónica de "neo-realismo", que não merece nem um parágrafo no mundo modernaço dos gadgets em que se entretém o primeiro-ministro, nem os interesses dos blogues finos da direita e dos blogues fracturantes da esquerda. Este não é o Portugal deles, esta é a face póstuma de um Portugal que eles desconhecem e abominam, que vota politicamente errado (embora votem nos únicos que dão voz aos seus interesses, tão irracionais economicamente como todos os outros interesses, como dos professores, por exemplo, ou os dos gestores), que não é fashionable, não tem "marca" nem griffe, nem aparece no Time Out dos urbanos da moda, nem tem graça para ser gozado em qualquer programa menor de humor, como os que proliferam hoje por todo o lado. Se aparecem nos jornais é como arqueologia industrial, arcaísmo, anacronismo, ou, pior ainda, folclore local, que é visto com a distanciação de uma bactéria exótica.

Os problemas sociais são para muita gente uma maçada. Melhor: as diferenças sociais e a conflitualidade que daí surge são para muita gente uma maçada. O mundo deles é constituído por uma pirâmide social que começa nos abusadores do rendimento mínimo, passa para a "classe média baixa", para a "classe média" propriamente dita, a abstracção de muitas políticas, e sobe depois para os arrivistas com dinheiro, que o Independente tratava como o "novo dinheiro", os que vêm no jet set das revistas populares, para terminar na aristocracia do "velho dinheiro", o jet set invisível da verdadeira alta. Com esta pirâmide social, tão fictícia como os Morangos sem Açúcar, não há lugar para portugueses como os mineiros de Neves Corvo.

Mas os mineiros de Neves Corvo existem, estão lá, à superfície e no fundo, vivem nas suas aldeias e vilas, com famílias, presas num Portugal tão profundo como o das minas onde trabalham. Não são muitos, não são novos, não fizeram as Novas Oportunidades e se saíram do Alentejo ou foi porque emigraram, ou porque vão nas excursões nos autocarros da autarquia. Os seus slogans, o penhor que pagam à hegemonia da comunicação, nem sequer são muito eficazes fora do mundo das minas. Tinham duas reivindicações: o aumento do "subsídio de fundo" e a "comparticipação de Santa Bárbara", expostas em duas palavras de ordem - "aumento do subsídio de fundo, não é nada do outro mundo", "Sta. Bárbara padroeira, comparticipação inteira".

O "fundo" era o "fundo" das minas, um lugar que dificilmente imaginamos na sua dureza, mesmo que as minas já não sejam como as do Germinal. Mesmo assim, quanto vale trabalhar nestas condições? Como é que calculamos com justiça o valor de um trabalho duríssimo e perigoso? Não sei. Só sei que não pode ser calculado apenas em termos de pura "racionalidade económica" como agora se diz. E, imaginem, eu sou um liberal... E o dia de Santa Bárbara, 4 de Dezembro, padroeira dos mineiros, a noiva à força da Bitínia, convertida ao cristianismo e que viu a terra abrir-se para a esconder, querem nesse dia os mineiros a "comparticipação inteira". A Santa que uma antiga oração que apela a outras suas virtudes milagreiras, contra os trovões e os relâmpagos, talvez os ajude, a "enfrentar de fronte erguida e rosto sereno todas as tempestades e batalhas da vida".

Pois é. Isto é o Portugal que falhamos, o Portugal que ignoramos, o Portugal que deixamos deslaçar, fragmentar, perder-se numa deriva para a obscuridade que as luzes do espectáculo fátuo em que vivemos não alumiam. E no entanto, há muito desse Portugal lá fora: mineiros, pescadores, agricultores, operários, trabalhadores da construção civil, empregadas da limpeza, marinheiros, gente que faz os trabalhos menos qualificados nos hospitais, nas escolas, nas autarquias, numa deriva para a pobreza, para o desemprego, para o fim da breve esperança de um Portugal melhor e mais justo. Claro que há outro Portugal, mais jovem, mais culto, mais dinâmico, apesar de tudo com mais expectativas realizáveis e menos peso de más condições de vida ancestrais. Mas, mesmo esse, está em crise, mesmo esse prepara-se para emigrar, prepara-se para se soltar na esperança da mobilidade social. Mas o nosso drama é o deslaçamento entre os dois mundos, a perda de contacto entre as realidades sociais diferentes, o afastamento de portugueses dos portugueses e a ignorância, quando não a indiferença, que os afasta uns dos outros.

É por isso que não queremos saber para nada dos mineiros de Neves Corvo e da sua arcaica greve. Na verdade, nunca houve muito cimento entre os portugueses, mas agora há menos e tudo trabalha para que ainda haja menos.

(Versão do Público de 10 de Abril de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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