ABRUPTO

15.3.10


COMO SE GASTARAM 920 MILHÕES DE EUROS



Apesar de muitos ataques e muitas incompreensões e não fazendo tudo sempre bem, a Assembleia da República iniciou uma nova fase da sua actividade centrando muitos dos seus recursos num trabalho de escrutínio da governação que, por várias razões, nunca se pôde realizar devidamente no passado. Há quem não goste disso, e há quem deseje fervorosamente que a experiência falhe. O sentimento anti parlamentar ajuda à festa, considerando que tudo que vem da Assembleia da República é mau. E há, evidentemente, um efeito do conflito político, porque o partido do Governo tem interesse em desprestigiar todas as tentativas de escrutínio governamental, lançando a confusão e sabotando tudo o que possa ser um reforço do papel da Assembleia da República.

É verdade que nem tudo correu bem. Foram tomadas opções erradas quanto à forma de defrontar alguns assuntos e nem todos os deputados se prepararam como deviam para defrontar a responsabilidade desta fase nova da Assembleia, mas é justo afirmar que outros o fizeram. Nem sempre esse trabalho sério e qualificado transparece na comunicação social, mas existe. A coreografia das sessões públicas nem sempre se presta a uma contenção que a seriedade dos assuntos muitas vezes exige e o reporting sobre o que se passa privilegia o espectacular e, nalguns casos, quando jornalistas estão envolvidos, existem pequenas vinganças corporativas. Mas, no meio de toda esta turbulência, têm emergido informações importantes para o julgamento público sobre a actividade de governantes e outros interventores no espaço público e essa é uma função que fortalece uma vertente da acção parlamentar que é fundamental numa assembleia moderna.

Sabemos hoje várias coisas, que, num país consciente do que deve ser a responsabilidade de governar, provocariam legítimo escândalo público. É o caso das primeiras audições da Comissão de Inquérito à Fundação das Comunicações Móveis, que, na melhor tradição orwelliana, não é nem fundação, nem trata das comunicações móveis, mas sim de um dos dois grandes programas de bandeira e propaganda do primeiro Governo Sócrates, a distribuição gratuita do computador Magalhães. O outro programa que precisa de escrutínio é o das Novas Oportunidades.

E o que vamos sabendo mostra como na legislatura anterior se gastaram centenas e centenas de milhões de euros de uma forma irresponsável, sem resultados verificados que justificassem tal desperdício de dinheiro. Sabemos agora, no meio das maiores contradições sobre os valores globais, que nos dois programas e-escolas e e-escolinhas se gastou qualquer coisa como 920 milhões de euros, quase mil milhões de euros, caso os números sejam finalmente os correctos, o que nunca se sabe tal é a confusão das declarações contraditórias.

Mas souberam-se mais coisas. A primeira é que nenhum estudo de carácter pedagógico antecedeu a decisão de oferecer a cada estudante dos primeiros graus do ensino um computador individual. Não se estudou se havia vantagens pedagógicas, quer no plano escolar, quer no plano do acesso à informática e à rede. Não houve e não há. Continuamos a não saber que utilidade pedagógica teve a distribuição de um milhão e 200 mil computadores, continuamos a não saber se esta era a solução mais indicada para as idades abrangidas pela oferta, continuamos a não saber se para além do agrado que qualquer pessoa tem quando lhe dão um bem e se os resultados justificam de perto ou de longe tão avultada verba. Não me custa admitir que possa ter havido qualquer benefício, houve certamente, mas duvido com idêntica certeza que tão avultada quantia tivesse qualquer justificação numa relação custo-benefício.

Sabemos que tudo começou numa decisão ad hoc, ou usando um preciso plebeísmo, à balda. Alguém apareceu com o computador americano a que hoje chamamos "Magalhães" a José Sócrates e não teve qualquer dificuldade em convencê-lo que tinha aí uma excepcional oportunidade de propaganda, ele que é um deslumbrado pelas tecnologias e os gadgets e que percebeu de imediato as oportunidades de propaganda para si, o Governo e o PS. Sabemos também que ninguém se quer responsabilizar nem pela iniciativa, nem pela escolha deste tipo de computador.

O que não se estudou à cabeça - insisto que não ter existido nenhum estudo, recomendação, análise de carácter pedagógico mostra uma grande irresponsabilidade na decisão - também não se estudou no fim. Nem a montante, nem a jusante. Não sabemos que efeito teve a distribuição dos Magalhães, não sabemos se esta teve algum efeito pedagógico nas escolas, não sabemos quantos computadores continuam em uso pelo seu público-alvo, quantos foram guardados e nunca foram usados, quantos foram usados em casa ou na escola, quantos estão avariados, quantos foram para mercados irregulares e para a economia paralela, ou seja, vendidos em feiras, em leilões na Internet, ou pura e simplesmente vendidos para o mercado informático. Não sabemos se outras alternativas muito mais baratas e menos espectaculares podiam ter dado muito melhores resultados. Não sabemos, mas suspeitamos, porque não é por acaso que países com muito mais recursos do que Portugal não enveredaram por nenhum programa semelhante.

Também sabemos que nunca se prepararam escolas e professores para o uso massivo que o computador era suposto ter. As acções de preparação dos professores, organizadas à pressa e erraticamente, são posteriores às primeiras distribuições do computador nas sessões de propaganda do primeiro-ministro. O mesmo irresponsável amadorismo acompanhou todo o processo, preparado também à pressa, com software cheio de erros, dependendo da produção da fábrica, e oscilando aos arranques, que deixavam numa mesma escola alunos com o "Magalhães" e outros sem ele, ou seja, tornando difícil a sua utilização colectiva numa turma.

Sabemos também muito mais coisas, umas que identificam graves obscuridades ainda não esclarecidas, outras que mostram que o mesmo amadorismo errático atravessou todo o programa, desde o enquadramento institucional bizarro, destinado a escapar ao concurso público, até à engenharia financeira completamente ao arrepio das normas da administração pública e do bom uso dos recursos do Estado. Como é possível que cada responsável venha com os seus próprios números, diferentes dos outros, mostrando que não existe qualquer verdadeira noção do dinheiro que já se gastou? Como foi possível gastar tanto dinheiro num programa que nos foi dito ser quase grátis? Como foi possível que, a olhar para os números - cerca de 930 milhões de euros, que na parte do e-escolinhas, serviu para comprar um milhão e 200 mil computadores -, o "Magalhães" seja um dos computadores, com as suas especificações, mais caros de sempre?

Como foi possível ter gasto todo este dinheiro desta forma amadora? Foi, porque este dinheiro serviu essencialmente para pagar um programa de propaganda governamental em vésperas de eleições. A nossa crise também vem aqui. Novecentos e vinte milhões de euros. Muito, muito dinheiro, para se brincar.

(Versão do Público de 15 de Março de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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