ABRUPTO

8.3.10


AS RUPTURAS DEMOCRÁTICAS DEPOIS DO 25 DE ABRIL



No debate interno no PSD a utilização por Paulo Rangel da palavra "ruptura" acabou por gerar um subdebate sobre a história portuguesa depois do 25 de Abril e, em particular, sobre o papel do PSD nessa história. Como se passa sempre nestas circunstâncias, o uso das palavras num contexto de conflito político, em que o seu uso e sentido acaba por ter um papel identitário, gera um efeito de obscurecimento sobre o seu significado e sobre os seus "factos de suporte".

Do meu ponto de vista, as rupturas depois do 25 de Abril são os momentos em que, por vontade política de um ou de um grupo de protagonistas, se criou uma situação diferente de um momento para o outro, e sem retorno, ou com um retorno imperfeito que não pode escapar às consequências do momento da ruptura. O 25 de Abril é um exemplo paradigmático e o mais evidente, a descolonização ou o 25 de Novembro outros. Já num âmbito mais restrito, também o é a decisão do PCP de se opor na rua à manifestação da "maioria silenciosa" em 28 de Setembro de 1974, que abriu o "processo revolucionário em curso" que conheceu incrementos no 11 de Março e foi quebrado pelo VI Governo Provisório e pelo 25 de Novembro. Mas ainda hoje existem consequências dessa decisão do PCP na Constituição. A resistência liderada pelo PS ao PREC cabe também na categoria de uma ruptura política, cujo efeito foi colocar Mário Soares e o PS no centro da governação até 1985, apenas com o hiato da AD, e dar-lhe a Presidência. A Mário Soares se deve também outra ruptura importante acabando com os últimos projectos pós-revolucionários de "socialismos" basistas e de democracias tuteladas, na sua primeira volta eleitoral nas presidenciais em 1985.

Para esta história, na parte que diz respeito ao processo de consolidação da nossa democracia, o PSD deu duas contribuições decisivas e ambas podem ser consideradas de ruptura: Sá Carneiro impôs o primeiro governo não socialista, também o primeiro de alternativa depois do 25 de Abril; e Cavaco Silva, com a sua maioria absoluta, que gerou um processo de governabilidade, subvertendo um sistema político-eleitoral destinado a impedir maiorias de governo, e que permitiu consolidar o elo que faltava à democracia portuguesa, uma economia de mercado. Aqui, no debate Rangel-Passos Coelho, Rangel tem razão e Passos Coelho não. Este afirmou que aquilo que Rangel dizia serem rupturas só tinham sido possíveis por acordos com o PS. Na verdade, ambas foram realizadas contra o PS e foram rupturas exactamente porque rompiam com situações em que o establishment socialista se juntou numa posição agressiva de resistência às mudanças, foi derrotado e depois teve que aceitar, numa situação de fragilidade, mudanças a que sempre se tinha oposto.

Quanto mais se analisa esses momentos, de 1979-1980 e 1985-1987, mais se percebe como foram verdadeiras rupturas, tendo todas um ponto comum: alicerçaram-se em vitórias eleitorais. Nenhuma teria sido possível sem forte mobilização popular e da opinião pública, como de algum modo a resistência socialista de 1975 tinha como fonte de legitimidade a vitória eleitoral para a Constituinte. Este facto chama a atenção para uma realidade igualmente válida para os dias de hoje: não há rupturas possíveis em democracia sem terem por trás uma forte legitimidade eleitoral dos seus protagonistas.

Nenhuma teria sido possível sem personalidades fortes que sabiam ao que vinham, que o disseram com clareza e que tinham mostrado pelos seus actos que não estavam a fazer teatro. Não tinham vindo do berçário dos partidos e da "carreira", mas sim do conflito e do confronto, nalguns casos, com todos os riscos. Sá Carneiro era a cabeça de uma oposição muito dura à pretensão dos militares de manterem uma tutela sobre a democracia civil e Cavaco Silva acabara com o bloco central, porque sabia que a "modernização" do país implicava a criação de uma economia de mercado e o PS bloqueava. Ambos foram tratados de "irresponsáveis" e ambos foram acusados de "agitadores" e desestabilizadores", com razão neste último caso. Ambos sabiam que o PS era parte do problema.

A vitória eleitoral da AD, e o seu Governo não socialista, representou uma ruptura que punha em causa uma espécie de direito natural - que perpassa ainda hoje nas palavras e nos actos de socialistas mais velhos como Soares ou Almeida Santos - dos socialistas a governarem em democracia. Como se o país, a república e a democracia fossem sua propriedade natural e quando governa a "direita", como eles dizem, existisse uma espécie de usurpação contra natura. Consequentemente poucos governos foram atacados com maior agressividade do que o da AD, que conheceu greves gerais e turbulência nas ruas, cujo único paralelo posterior foi o conflito da Ponte 25 de Abril, também contra um dirigente de ruptura, Cavaco Silva. Anda tudo muito esquecido, mas o que se disse de Sá Carneiro, Freitas do Amaral e da AD, no plano privado, pessoal e público (um jornal da Frente Republicana e Socialista acusava a AD de assassinatos), nem de perto nem de longe se compara com a actualidade, se pudesse ser comparado (e não pode porque as desventuras de Sócrates têm em primeiro lugar origem no seu envolvimento em processos obscuros que nunca são esclarecidos).

O Götterdämerung da AD, com a sua tragédia mortal e com a derrota de Soares Carneiro, ainda veio reforçar mais a sua característica de momento único e de ponto sem retorno da vida política portuguesa, tornando-se uma referência política para o PSD e o CDS-PP, assim como para a sua área "centrista" então ocupada pelos "reformadores" e o PPM. A partir da AD, a alternância desdramatizou-se, como é normal em democracia, e deixou de haver direito natural a governar em nome de legitimidades políticas que vinham da oposição antes do 25 de Abril. As políticas da AD significaram também uma inversão do "estado" herdado do PREC (como na "reforma agrária") e só não foram mais longe devido aos bloqueamentos constitucionais que apenas foram alterados no outro momento de ruptura associado ao PSD, os governos de Cavaco Silva.

A ruptura a que se associa Cavaco Silva beneficiou do terreno desbravado pela AD, mas foi muito mais longe quanto à questão da governabilidade em democracia. A maioria absoluta de Cavaco Silva em 1987 foi uma verdadeira revolução prática da vida política portuguesa e subverteu um sistema eleitoral que fora construído exactamente para a impedir. O Governo de Cavaco Silva foi o primeiro a levar o seu mandato até ao fim, e o primeiro a poder ser responsabilizado pelo eleitorado pelo cumprimento do seu programa eleitoral. Não foi coisa menor, até porque este Governo estável existiu num contexto em que Portugal efectivamente começou a ser "europeu", quer pela adaptação que a nossa administração teve que fazer aos critérios da Comunidade, quer também pelos fluxos financeiros que vieram para Portugal. Uma ideologia "modernizadora" transformou Cavaco Silva de um eurocéptico em europtimista e isso deu um impulso a uma governação que esteve na base de muitas instituições novas mais adequadas a uma economia de mercado e a uma democracia. O bloqueio constitucional acabou com a revisão de 1989, que por si só mostrou o carácter de ruptura da governação de Cavaco Silva. É verdade que o PS permitiu a revisão que efectivamente acabava com o PREC na economia, porque a vitória do PSD em 1987, e o processo de integração europeia, lhe tinha retirado qualquer campo de manobra. Durante dez anos, o PS, por puras razões ideológicas, tinha mantido as nacionalizações, o controlo operário e a reforma agrária na Constituição, mesmo quando as políticas dos seus governos faziam verdadeiros malabarismos para as tornear. Havia um nó górdio e o PSD de Cavaco Silva cortou-o.

Desde meados dos anos 90, todos os problemas se agravaram e nos últimos anos atingiram uma espécie de paroxismo na sua gravidade por razões internas e externas. Nós górdios passaram a haver muitos e precisam da espada de Alexandre para os cortar. Por isso, o conhecimento das rupturas, que melhoraram a nossa democracia, e o bem-estar dos portugueses, é fundamental. Não estamos em tempo de amabilidades.

(Versão do Público de 6 de Março de 2010.)

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© José Pacheco Pereira
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