ABRUPTO

3.2.10


PRÓ-OBAMA, OBAMA, EX-OBAMA



Como as coisas se fazem. Obama. Discurso do "estado da união". Dois dias antes, foi antecipada uma das linhas de orientação do discurso. Ia haver freeze em certas despesas. Depois veio um fragmento populista. Iria haver freeze nos salários dos lugares cimeiros dos assessores. O costume. Depois veio, um dia antes, uma justificação: o Presidente não iria centrar o discurso no seu plano de saúde. Pudera. Muito provavelmente, o plano ficou encalhado depois da derrota dos democratas em Massachusetts, que o fez perder a maioria qualificada no Senado. E há críticas generalizadas à "obsessão" com o plano de saúde, em vez de prestar atenção à economia. It"s the economy, stupid. Sombras. Sentimento geral de insatisfação com Obama, Obama comparado a Carter na indecisão. Quebra nas sondagens.

Nem tudo isto aconteceu como foi pré-noticiado. O papel das antecipações e das fugas controladas para a imprensa é controlar o pré-discurso com o que se pretende. Sem muito ruído. Moldar expectativas, criar desatenções. Tudo muito professional. Obama e o seu dream team. Há o antes, o durante e o depois. O antes e o depois é dos profissionais, dos spin doctors. O meio é de Obama.

A sala mais nobre do Capitólio está cheia. Senadores, congressistas, os juízes do Supremo vestidos a rigor, militares em farda de gala, o "Governo". Nas galerias, de pé, convidados, embaixadores, enchem a parte mais distante, parte da moldura. Michelle Obama e a senhora Biden nos seus papéis de "primeiras damas". Os convidados chegaram aqui após sucessivas verificações de segurança, uma, duas, três, quatro, emblemas, cartões plastificados, mais do que um, raios X, detectores de metais, cães para cheirar explosivos. Aqui é a sério.

Lá em baixo, à inglesa, dois "mordomos", anunciam o Presidente à Presidente: Madame speaker the President of the USA. Mas a pompa termina aqui. Palmas de todos e gritos. Obama entra, beijando algumas congressistas, já numa confusão mais democrática, mais americana. Como num congresso partidário. As televisões não perdem um sorriso, um beijo, em esgar. A Fox tem como comentadora Sarah Palin, falando da sua cidadezinha no Alasca. Prevê-se o pior. O Twitter ferve de mensagens, monitorizado pela CNN, estado a estado.

O Presidente cumprimenta a pequena multidão. Palmas. Finalmente chega ao púlpito onde estão os presidentes do Senado (o seu vice-presidente Biden) e do Congresso, Nancy Pelosi. Durante toda a sessão, Biden vai acenar com gravidade e Pelosi levantar-se entusiasmada com palmas e um sorriso de uma ponta a outra. No meio, Obama. Começa. Já se sabe que o discurso vai durar mais de uma hora. Durou 71 minutos. O primeiro state of the union foi o de Washington e durou meia dúzia de minutos. E começa o espectáculo.

Obama faz aquilo que faz melhor. Ninguém diria que há teleponto. Este eterno jovem negro, quase branco sem parecer mulato, transpirando força e determinação, movendo-se como um actor profissional para a esquerda e a direita, fazendo as pausas certas, como um actor daqueles filmes patrióticos que os americanos fazem melhor do que ninguém. Como Henry Fonda. Também, como de costume, o discurso é excelente, populista, intimista, "de proximidade". Não há um único tema que não levante (o que não quer dizer que não haja assuntos que não omita, como Guantánamo). Mas a estrutura do discurso é confusa e o excesso de "eus" prejudica o tom presidencial. Pouco importa: é boa televisão.

Começa por elogiar o povo americano e a sua great decency. Nenhum europeu nomearia esta virtude. Logo a seguir, fala pela primeira vez em esperança. À cabeça, um dos seus slogans. E vai para a economia, enunciando o inimigo que vai estar por detrás de todo o discurso: a banca. Começa pela justificação dos apoios à banca. Everybody hate the bank bailout, mas foi preciso para salvar a economia. O secretário do Tesouro, que foi "grelhado" no mesmo dia no Congresso por democratas e republicanos, sorri com o apoio presidencial. Mas logo a seguir vem o pagamento: fee on the biggest banks. Impostos para a banca. Palmas.

Depois, vem o incontrolável desemprego. Obama elogia os seus planos, os cortes de impostos, e manda uma "boca" aos republicanos. "Sabia que isto vocês iam gostar." Palmas democratas. Pelosi salta do lugar a bater palmas. Defesa do Recovery Act, conhecido como "Stimulus Bill", o grande plano de investimentos para gerar emprego que gastou milhões e dá escassos resultados. A comunicação social passou a semana a mostrar os absurdos financiamentos (três empregos a estudar as hormonas no namoro...) e a falência do "estímulo". Gelados os republicanos. E há mais do mesmo: new job bill. Empréstimos para pequenas empresas. Auto-estradas. Energias limpas. Cortes de impostos para empresas que empreguem americanos. Ajuda às exportações. Educação. E... o plano para a saúde. "Se alguém souber melhor, diga-me."

E depois: se isto não funciona como devia, a culpa não é minha. A culpa é de "Washington", ou seja, dos presentes naquela casa, congressistas e senadores. Populismo quanto baste, irónico, agressivo, duro, ameaçando com o veto, exigindo ter as leis "em cima da mesa amanhã". Um comentador perguntava depois: "Ele falou sete vezes em "Washington" como fonte do mal, mas ele não é "Washington", com as suas maiorias no Senado e no Congresso?" É, mas faz de conta que não é. Na verdade, alguns democratas começam a sugerir mudanças na Constituição para reforçar os poderes presidenciais face ao Congresso e ao Senado. Caminho perigoso.

No défice, volta ao BOB, blame on Bush. "Quando eu entrei por aquela porta, já se devia triliões, e eu acrescentei um, para salvar a economia de uma depressão." "Mas agora vou congelar os gastos do Governo nos próximos três anos, menos na saúde e na segurança." Mas só começa para o ano. Risos dos republicanos. Obama desdenha-os. E mais impostos para os ricos. E volta ao populismo, sempre metido no meio dos temas como uma espécie de lubrificante, para levantar as almas dos americanos. Os culpados, os de "Washington", batem palmas masoquistas.

Sim, diz Obama, há uma crise de confiança nos políticos, nos partidos. Mas ele está lá, acima dessas politiquices. "Eles" estão permanentemente em campanha eleitoral. Ele não. Contra os lóbis, cujos representantes diz recusar nomear para lugares na administração. A Fox, logo a seguir ao discurso, divulga uma lista de lobistas nomeados por Obama. Critica o obstrucionismo dos republicanos: "só sabem dizer que não". Critica o cinismo da imprensa, dos comentadores. E, numa iniciativa inédita, critica o Supremo Tribunal, porque este considerou inconstitucional haver limites aos apoios de empresas aos candidatos. Espanto dos juízes, um deles diz que não com a cabeça. Um Presidente a atacar o judiciary branch num discurso do "estado da união" nunca tinha acontecido. Populismo oblige.

Por fim, entra o resto do mundo no discurso, mas muito de passagem. Iraque, Afeganistão, Irão, Coreia, Haiti, nada de novo. O Presidente quer boas relações com os russos. Dizem os cínicos que ele precisa de algum resultado na política externa e os russos podem dar-lho. E política externa é militares, forças armadas. Apoios aos veteranos, elogios à mulher pelo apoio às famílias dos militares. Palmas. Michelle Obama manda sentar, parar as palmas. Obama diz "ela fica embaraçada". Mais palmas. Depois, de repente, os gays nas forças armadas vão deixar de ser perguntados e discriminados pelas suas preferências sexuais: don"t ask, don"t tell.

Final emotivo, evangélico, intimista. A carta daquela criança que "me" pergunta pelo emprego dos pais. Aquele rapaz que "me" mandou a mesada para ajudar o Haiti. Também eu errei, erramos, não fizemos tudo bem. Mas eu não desisto, eu sou determinado, eu tenho os valores do povo americano, outra vez a "decência". God bless the United States.

Após dezenas de interrupções por palmas, a retirada em glória. Beijos, autógrafos. E depois a penosa saída dos convidados do edifício engarrafado. Nas televisões, os republicanos encenam um novo tipo de resposta: o governador do estado de Virgínia faz um contra-discurso na sala de sessões do seu "Capitólio", em Richmond, por onde vagueia a alma de Jefferson. Também ele trouxe assistência, a família, uma irmã que "serviu" nas forças armadas, generais, povo. Outro jovem enérgico, ascendente na selva republicana, bom falador, branco, nascido na Alemanha numa base militar, jogador de futebol americano, advogado. Mas não chega aos pés de Obama. Muito ideológico, muito clean para ser tão eficazmente populista, demasiado consensual.

God bless the United States. Bem precisam, e nós também precisamos.

(Versão do Público de 30 de Janeiro de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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