ABRUPTO

4.1.10


VOLATILIDADE


O fim do ano de 2009, que erradamente é tratado como o fim de uma década (o que é que os jornais farão no fim de 2010, quando a década acaba mesmo?), suscita os habituais balanços e previsões. Perguntado por um amigo sobre o que vai acontecer em 2010, eu respondi que tudo podia acontecer. O comentário dele foi "pareces o Professor Karamba a responder sobre quem ganha o campeonato, é o Benfica, mas também pode ser o Porto ou o Sporting". Eu acrescentaria ao sábio, ou o Pevidém Sport Clube. É isso mesmo, a ciência sobre 2010 é do tipo da do Professor Karamba, tudo pode acontecer, a mais certeira de todas as previsões. Vou por isso acertar de certeza.

Pode cair o Governo? Pode. A qualquer altura, amanhã mesmo, daqui a uma semana, basta acontecer outro daqueles que o PS amavelmente chama "romances judiciais", o Freeport, a Face Oculta, etc. Aparece um novo "romance judicial" e o copo não aguenta outra gota e entorna.

Cai porque quer ou sem querer? Pode ser por vontade e cálculo ou por desespero e raiva. Pode cair porque José Sócrates pensa (ia colocar o PS em vez de Sócrates, mas hoje escrever o "PS pensa" é uma contradição nos seus termos) que indo a eleições sai de lá com uma nova maioria absoluta, ou, porque, voltando ao ponto anterior, um qualquer escândalo ou o desenvolvimento de um qualquer "romance judicial" o faz cair com fragor e ranger de dentes.

E pode cair por muito mais coisas: conflito grave com o Presidente da República ou com a Assembleia da República. Pode começar por uma pequena coisa, aparentemente inócua ou inocente ou descuidada, e depois avolumar-se dia após dia até chegar a um impasse ou a um medir de forças em que não há outro remédio senão dissolver a Assembleia ou substituir o Governo e o primeiro-ministro por outro. A bizarra sucessão de prazos em que pode ou não haver dissolução ainda complica mais a questão, mas não lhe altera o fundo.

Pode tudo correr "normalmente"? Também pode, por muito pouco provável que pareça. O complexo sistema de interesses presente no topo dos dois partidos, PS e PSD, pode tomar conta da situação e dar origem a uma direcção do PSD complacente com o PS e que desenvolva com ele um casamento de conveniência que, como se sabe, é mais estável dos que os de amor. O peso da "responsabilidade", essa palavra tenebrosa em política democrática, pode gerar uma pasta suficientemente pastosa, perdoe-se o pleonasmo, para que ambos os partidos se entendam na cegueira. Para isso, Sócrates pode ficar, mas Manuela Ferreira Leite - ou alguém semelhante - tem que ser rapidamente excomungada e remetida para as trevas exteriores para que, com grande alívio do PS e das "forças vivas da nação", do BES à Mota e Companhia, passe a haver uma "oposição responsável". O tumulto será adiado, mas não evitado, e como é só de 2010 que falo, ficará mais para a frente.


Pode aparecer um populista que vire tudo ao contrário e cujo "carisma" (palavra que a ignorância dominante pensa retratar uma virtude) subverta o "sistema"? Poder, pode, mas é pouco provável. Os populistas que nós conhecemos têm exactamente esse inconveniente, é que já os conhecemos. Há dois ou três, mas não se está a ver qualquer entusiasmo que leve os descamisados a vitoriarem-no numa praça qualquer, ou a marchar com ele sobre Roma. Os militares também já não andam de cavalo branco, impecáveis na sua farda número um. Populismo temos, bastante até e reforçando-se todos os dias, até no voto tribunício, mas populistas eficazes não há.

Mudança política? Há no verbo, não há na acção e, mais do que isso, dificilmente pode haver, porque vontade de mudar existe pouca. Há muita conversa sobre a mudança, muita retórica, mesmo muita zanga a pedir mudança, mas quando mudar significa mesmo mudar, com o cortejo de dificuldades que a mudança trás, ninguém a quer, ninguém está disposto a dar-lhe o seu voto. O eleitorado mudou desde o 25 de Abril com o seu voto as coisas duas vezes: uma, com a vitória da AD, e outra, com a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva. Depois fez dois pequenos ajustamentos: elegeu Guterres para se apaziguar, ou seja, evitar que houvesse novas mudanças, e elegeu Sócrates porque não queria Santana Lopes, foi uma coisa pessoal e intransmissível, mas nem num caso nem noutro se pode falar de mudanças. Com a AD e com Cavaco em 1987, os eleitores tinham esperança e queriam mesmo mudar as coisas. Sabiam que os governantes que escolhiam não iam deixar as coisas como estavam, arriscavam políticas novas. Muito significativamente a vontade de mudança mais funda do eleitorado foi sempre a favor da direita e do centro reformista, até porque se fazia não apenas contra o PS, o PCP e o MFA (na AD), ou contra o PS e o "bloco central" (em 1987), mas a favor de rupturas de todo o tipo, institucionais, económicas, sociais e políticas, e contra tudo, a comunicação social e o establishment.Hoje, não se vislumbra em lado nenhum qualquer genuína vontade de mudança, o que também se compreende: o eleitorado está demasiado conservador e estatista, porque se agarra ao pouco que tem e não o quer perder. Mais até do que os partidos políticos, onde pode haver forças de mudança, demasiado minoritárias na actual conjuntura, por causa da conjuntura, os eleitores protestam ruidosamente, mas são no essencial muito prudentes, vivem totalmente no presente e assim não há futuro. Mas, como no futuro estamos todos mortos, mais vale o presente precário e remediado do que nada. E se for preciso hipotecar o futuro, como estamos a fazer todos os dias, porque não?

O que é que muda isto? Só vejo uma circunstância e não é brilhante: é o futuro bater-nos à porta mais cedo. Foi o que aconteceu aos argentinos, que acordaram numa bela manhã sem moeda e sem economia, e aos islandeses ou aos gregos, que tinham a bancarrota anunciada no Financial Times. Há outras versões menos economicistas deste futuro, mas igualmente pouco amáveis. Há o conflito social a descambar na violência. Há a possibilidade de a violência aparecer na vida política.


A ideia de que os actores políticos controlam o processo político é das ideias mais erradas que por aí circulam. Há demasiado ruído circulante e esse ruído não vem só de dentro da "classe" política. Esse ruído é um eco, por si só não levaria a nada. O ruído também não vem do "povo", por muito que haja um levantamento de cansaço (mais de cansaço do que indignação até agora) quanto à "situação". Não havendo populistas disponíveis na próxima esquina e tropas sublevadas, o ruído do "povo" fica pelos telefonemas ao Forum da TSF e a outros fora semelhantes, e no voto do protesto no BE e no PP. Mas também não é daí que vem o enorme ronco que nos confunde a todos.

O verdadeiro estrondo, o silvo agudo, o ribombar de todos os céus, vem de um Portugal encalhado em vários recifes, um pobre Titanic sem orquestra. Um Portugal com uma economia cada vez menos competitiva, com uma dívida que ninguém sabe como se vai pagar, com o drama social gravíssimo do desemprego, com um Estado que gasta metade do que se produz e por isso impede a economia de crescer, com corrupção generalizada, com partidos políticos desacreditados e encurralados, com uma comunicação social superficial e pouco independente do poder, com um povo cansado e desesperado, com uma elite demasiado confortável nos seus medos e nas suas ilusões, ou seja, o ruído e os seus múltiplos ecos vêm de uma profunda crise nacional, a maior desde 1974. O capitão em funções pensa que pode escapar aos recifes acelerando o navio e rasgando ainda mais o casco. E manda tocar a orquestra que não há.

O que há é demasiada volatilidade, esta é a única previsão certa.

(Versão do Público de 2 de Janeiro de 2010.)

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(...) li o seu artigo de hoje no Público e agradou-me, como é natural, logo a primeira frase, na qual faz notar que esta década só termina no fim de 2010.

(José Carlos Santos)
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Escrevo-lhe para deixar uma pequena nota a respeito de um pormenor que escreveu no seu texto de hoje ("Volatilidade"). Trata-se da questão de 2009 não ser o final de uma década, um tema que tenho visto referido em mais sítios, e que julgo ter origem na discussão que houve em torno da última passagem de século/milénio, mas que não julgo ser aplicável ao conceito de década tal como é comummente entendido.

Uma década é um intervalo de 10 anos, qualquer que seja, tal como um século são 100 anos ou um milénio 1000 - até aqui julgo que estaremos de acordo. Por questões práticas para referenciar séculos ou milénios, intervalos relativamente longos de tempo, convencionou-se usar uma numeração ordinal, começando no primeiro século ou milénio e contando a partir daí. Ora, não tendo havendo ano zero, então o século I (tal como o primeiro milénio) começou em 1 e terminou em 100 (de 1 a 1000 o milénio) - foi isto que gerou confusão no ano 2000, que foi erradamente apontado como o primeiro do novo século/milénio.

Ora, no caso das décadas, não se usa essa numeração ordinal - não se diz, por exemplo, que a 1ª Guerra Mundial teve lugar na 192ª década, embora seja de facto a 192ª década desde o ano 1. A convenção que existe (provavelmente não escrita, mas por uso) é referir uma década como um período entre um ano terminado em zero e o ano terminado em nove seguinte - por exemplo, a década de sessenta do século passado (ou "os anos 60") são os anos 1960-1969. Nesta terminologia, os anos 2000-2009, são uma década no sentido comum do termo, à qual os ingleses chamaram "the noughties" (para nós é mais difícil arranjar um termo - os 'anos zero'?).

A frase que o Pacheco Pereira ("O fim do ano de 2009, que erradamente é tratado como o fim de uma década") seria sempre formalmente incorrecta, visto que qualquer ano é o fim de uma década, se a entendermos no sentido formal de intervalo de dez anos. Mas mesmo no sentido corrente do termo, não está certo, a menos que se queira referir à contagem ordinal de décadas, que está longe de ser um conceito corrente.

(Bruno Espadana)

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É nas pequenas coisas que (também) se confirma a preocupação em respeitar a verdade dos factos.
Neste momento os jornais e TV’s afadigam-se a fazer os mais diversos balanços da 1ª década deste século. Faço no entanto notar que a década só acaba no final de 2010 e não de 2009 como a generalidade da imprensa (e já agora das pessoas) assume. O assunto pode ser facilmente consultado e confirmado. O erro, aliás, já vem de trás, quando se considerou o ano 2000 como o primeiro do século XXI e do 3º milénio, sendo que na realidade isso só aconteceu com 2001.
Isto é assim pela mesma e simples razão de que quando uma pessoa conta uma dezena ou uma centena de ovos o ovo nº10 pertence á primeira dezena e o 100 à 1ª centena.

(Fernando Gomes da Costa)

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Num artigo (“VOLATILIDADE”) que aborda questões fundamentais para Portugal, é sintomático que os comentários (pelo menos os que JPP dá relevo) sejam os relativos ao pequeno-grande detalhe do culminar ou não de uma década.

E, incorrendo eu no mesmo enfoque (talvez porque já farto de “questões fundamentais” - quem quer ouvir falar mais nesses assuntos…), aqui vai o meu contributo para a confusão.

Muito se pode dizer com base na ciência e na história sobre a chamada questão do milénio. A discussão é profunda, detalhada e como em tudo, a roçar o fanatismo de algumas posições.

A Humanidade, como sempre, resolve o caso à sua maneira, por costumes e por convenções, com base na ciência e na história, usa o que mais lhe dá jeito. É por isso que usamos uma base decimal para contar e não a logarítmica (que dá muito mais jeito e situações de alguma complexidade) ou uma de base 11 que não dá jeito nenhum. Ainda que com uma razão científica por trás, a convenção é quase sempre adoptar o que mais facilita. É o caso dos milénios, séculos, décadas, dos seus usos e costumes.

Para resolver um problema científico e técnico adoptou-se (convencionou-se) um calendário de base astrológica adoptado por vários países (ISO 8601) que reconcilia usos e costumes e facilita a vida a todos.

Uma boa síntese da discussão (vale o que vale e deve ser visto sempre crivo crítico e dúvida metódica) pode ser encontrado na versão inglesa da Wikipédia sobre o inicio/fim do milénio e século, mas também sobre o uso da década. Sugiro a versão inglesa, pois é, usualmente, mais vigiada a alterações deturpadoras, mais explícita quanto a questões e posições distintas no debate de posições e também mais esclarecedora.

É tudo uma questão do referencial usado. Neste momento, usando o referencial astronómico (ISO 8601) em vez do calendário gregoriano (que contém erros na sua contagem, como hoje é sabido…) o Milénio começou no ano 2000, o século idem e a chamada década (como referido, usada também para designar períodos consecutivos de 10 anos, independentemente do ano inicial) ibidem.


Claro, podemos sempre usar um qualquer calendário dos ainda em uso…


(Manuel João Bóia)


PS Em nada se justifica a ligeireza com que os media abordam estes assuntos. Bastava um pequena nota editorial nas referências do seus respectivos sites (como para o uso ou não do acordo ortográfico, regras de conduta, etc., etc.) esclarecendo qual a convenção que usam e porquê. Mas, como outras, para quem é que isso importa nos media… As regras hoje só atrapalham…

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O seu leitor Manuel João Bóia teceu comentários à questão da mudança de década com algumas imprecisões, que gostaria de assinalar. Comecemos pelo standard ISO 8601. Este não é, de maneira nenhuma, «um calendário de base astrológica» (presumo que fosse «astronómica» que o seu leitor tivesse em mente). É um standard sobre a maneira de se representarem datas, que nada tem a ver com o nosso calendário ser ou não de origem astronómica. Em particular, é falso que «usando o referencial astronómico (ISO 8601) […] o Milénio começou no ano 2000»; o ISO 8601 pura e simplesmente não se pronuncia sobre este assunto. Em segundo lugar, o nosso calendário continua a ser o gregoriano; desconheço quais sejam os «erros na sua contagem» a que se refere o seu leitor. Seja como for, o standard ISO 8601 e o calendário gregoriano são assuntos distintos; o primeiro ocupa-se, como já disso, de como representar as datas e o segundo de como contar a passagem dos dias. Podemos adoptar um e não o outro, podemos adoptar ambos ou podemos não adoptar nenhum.

O seu leitor também comentou que «usamos uma base decimal para contar e não a logarítmica». Mais uma vez, há aqui confusão entre dois tópicos de categorias distintas. Para já só há uma base decimal, pelo que seria melhor ter escrito «a base decimal». Além disso bases, neste sentido, têm muito pouco a ver com bases quando se fala de, por exemplo, «logaritmo na base 10». Finalmente, a ideia de que «uma de base 11 […] não dá jeito nenhum» não por onde se lhe pegue. A base 10 dá-nos mais jeito do que as outras porque somos ensinados a trabalhar com ela desde a infância e porque a nossa linguagem reflecte o facto de ser a base por nós empregue. Mas fora este factor não há grande diferença entre base 10, 11 ou 12, por exemplo. Aliás, existe mesmo uma organização (a Dozenal Society) que se dedica a tentar substituir o nosso uso da base 10 pelo da base 12. E os sumérios e os babilónios trabalharam em base 60 durante milénios, não se tendo dado mal com ela. Aliás, é por isso que os graus (em Geometria) e as horas estão divididos em 60 minutos e que os minutos estão divididos em 60 segundos.

(José Carlos Santos)

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