ABRUPTO |
semper idem Ano XIII ...M'ESPANTO ÀS VEZES , OUTRAS M'AVERGONHO ... (Sá de Miranda) _________________ correio para jppereira@gmail.com _________________
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31.1.10
(url) Manuel Alegre colocou o PS perante um facto consumado e no PS, em particular, a José Sócrates e a sua direcção. A única coisa que joga a favor da complacência de Sócrates e do PS com a atitude de Manuel Alegre é o convencimento de que só muito dificilmente haverá um candidato que possa ganhar a Cavaco Silva e, se é para perder, mais vale que seja Manuel Alegre do que qualquer candidato escolhido pela direcção. Alegre repete uma constante de várias eleições presidenciais. Parece, à partida, muito prometedor, até pelas simpatias da intelligentsia de esquerda e dos órgãos de comunicação, que lhe abrem um “espaço” simpático, mas depois falha nos votos como, se se parasse para pensar, se perceberia. Foi o caso da candidatura de Otelo e mais tarde da de Pintasilgo, as duas desenvolvendo-se com o mesmo padrão, muita esperança inicial, escassos resultados finais. A esquerda radical atira-se logo com entusiasmo ao candidato porque estas personagens abrem-lhe um terreno para o crescimento e porque há uma componente messiânica na sua mensagem. Foi assim que cresceram os GDUPs à volta de Otelo e o “pintasilguismo” saiu das reuniões confidenciais de senhoras para o “aprofundamento da democracia”, que mobilizou muitos esquerdistas agora no PS como foi o caso de Alberto Martins. Depois foi a desilusão. E a desilusão teria que ser, porque, por muito iludidos que estejam estes sectores e por muito radicalismo que ande por aí à solta e que encontrou no Bloco de Esquerda o seu tribuno parlamentar, a maioria dos portugueses costuma ter a sensatez de perceber que a retórica anticapitalista conduz à irresponsabilidade governativa, ao experimentalismo e ao desastre económico. As posições de Manuel Alegre, e é suposto que continue a defendê-las e não se subjugue ao pragmatismo tecnocrático de Sócrates, são irrealistas e confusas, muitas vezes demagógicas. E ele ofereceu-nos um ano de exposição pública para as percebermos melhor. A partir de agora, Alegre será perguntado, presume-se, sobre o que faria como presidente, diante deste orçamento, dianea da gigantesca dívida, diante do desemprego, diante da situação de crise económica crescente. Não custa imaginar o que dirá, mas não haverá voz tronitruante que não permita aos portugueses perceber que a “economia política” que se retira do seu discurso agravaria todos os factores de crise à solta na vida portuguesa. (url) (url) (url) JUDEU ERRANTE
Mais uma corrida, mais uma viagem. De regresso. (url) 20.1.10
(url) Dia após dia a mesma vida é a mesma. O que decorre, Lídia, No que nós somos como em que não somos Igualmente decorre. Colhido, o fruto deperece; e cai Nunca sendo colhido. Igual é o fado, quer o procuremos, Quer o 'speremos. Sorte Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa Forma alheio e invencível. (Ricardo Reis) (url) 19.1.10
EARLY MORNING BLOGS
1725 - Chanson Philosophique The nominalist in me invents A life devoid of precedents. The realist takes a different view: He claims that all I feel and do Billions of others felt and did In history’s Pre-me period. Arguing thus, both voices speak A partial truth. I am unique, Yet the unceasing self-distress Of desire buffets me no less Than it has other sons of man Who’ve come and gone since time began. The meaning, then, of this dispute? My life’s a nominal/real pursuit, Which leaves identity clear and blurred, In which what happens has occurred Often and never—which is to say, Never to me, or quite this way. (Timothy Steele) (url) 18.1.10
(url) (url) seeker of truth
follow no path all paths lead where truth is here (e. e. cummings) (url) 17.1.10
Os tempos de Sócrates estão a acabar, esgotados, encurralados, perdidos na nuvem de arrogância do "animal feroz", na amoralidade da sua política, na mentira total em que transformou toda a actividade governativa, na impotência face a uma crise nacional que agravou e uma crise internacional que ignorou, adiou e, por isso mesmo, também agravou. Entrando num novo ciclo político após as eleições, estragou todas as oportunidades, numa cegueira que vem da sua incontestável força anímica, e que se transformou numa dupla recusa: recusa de reconhecer a perda da maioria absoluta e recusa em mudar. Entrou numa nova situação com um governo velho e cansado, habituado a pôr e a dispor no Parlamento, e sem outra política que não fosse continuar a fazer o mesmo, mesmo que para isso tivesse que provocar novas eleições. Pensava ele que tinha tempo para inverter a situação fazendo um braço-de-ferro, como se o seu braço tivesse a força de 2005. Mas surgiu um novo elemento de aceleração que acentua ainda mais a esquizofrenia com que um Sócrates minoritário pretendia continuar como se nada tivesse acontecido: a crise grega. Não custava perceber, pelo modo como o Governo avançou por aquilo que gosta, o betão das grandes obras públicas e o keynesianismo bastardo do "investimento público", que o controlo do défice seria para 2013, quando a União Europeia exigia contenção. E mesmo assim ia-se ver, porque muita coisa podia mudar entretanto e empurrar os problemas para o futuro é um dos aspectos do voluntarismo de Sócrates. O programa para 2010 era gastar e continuar a gastar, até a crise grega e as quebras e ameaças de baixa nos ratings das agências internacionais terem exigido fazer em 2010 aquilo que era apenas para 2013. Quem viesse a seguir que pagasse a crise, e quem vem a seguir no fim da década e na próxima década já tem garantida uma vultuosa conta deixada pelo Governo actual, que faz as obras para os que vêm a seguir pagarem os custos. Mas a crise grega fez soar os alarmes todos e então a esquizofrenia aumentou: cada inauguração, hospitais, creches, pontes, linhas de caminho-de-ferro, soa agora como um passo na direcção da "situação explosiva" de que o Presidente falou e de que Manuela Ferreira Leite fala solitária há ano e meio. Pois é, o virtual é socrático, o real cavaquista e leitista. E quanto mais Sócrates se enterra na negação do real, mais este lhe bate à porta. Até o próprio parece começar a aperceber-se disto, e a responder a este fim dos tempos numa fuga em frente obstinada, porque é da sua natureza, mas confusa e caótica. Já toda a gente percebeu tudo isto menos os intelectuais orgânicos "socráticos", um conjunto modernaço de gente que tem o coração no Bloco de Esquerda, mas a carteira no PS, ou melhor, no gabinete do primeiro-ministro. Gente que pouco preza a liberdade mas que tem acima de tudo um enorme fascínio pelo poder como ele se exerce nos dias de hoje, entre o culto da imagem, o pedantismo das causas "fracturantes", o vanguardismo social, o "diabo que veste Prada" ou Armani, e o "departamento dos truques sujos" à Richard Nixon, tudo adaptado à mediania provinciana da capital. A ascensão ao poder de uma geração de diletantes embevecidos com os gadgets, pensando em soundbites, muito ignorantes e completamente amorais, que se promovem uns aos outros e geram uma política de terra queimada à sua volta, é a entourance que o "socratismo" criou e vai deixar órfã. Não sei se isto vai acabar com um bang ou com um ping, mas que já está no fim tenho poucas dúvidas. Isso não significa que todos os dias esta degenerescência do pensamento no poder não faça os seus estragos. Em que país um ministro das Obras Públicas pode pensar com esta superficialidade assustadora sobre os méritos de um TGV que era para nos unir à Europa e vai ficar em Madrid? Veja-se frase toda: "Lisboa pode-se transformar, por exemplo, na praia de Madrid, em termos de condições turísticas, as condições que nós temos para desportos novos como o surf ou se nós pensarmos na articulação que Lisboa pode ter com Setúbal, com Cascais, com Sintra."Não há uma ideia certa , desde a "praia de Madrid", aos "desportos novos como o surf", à "articulação que Lisboa pode ter com Setúbal, com Cascais, com Sintra". É tudo asneira. Mas há mais: em que país um ministro das Obras Públicas pode ver assim a inovação tecnológica? E de novo vale a pena transcrever a frase toda: "Quando o comboio foi introduzido no século XIX, provavelmente as carroças que eram puxadas a cavalos caíram e, se calhar, na altura, os agentes económicos que estavam ligados à exploração das carroças, e que levavam as pessoas, ficaram extremamente tristes e todas as indústrias que estavam associadas, a indústria da palha, por exemplo. Reparem os industriais que estavam preocupados com o abastecimento da palha para os cavalos, ficaram preocupadíssimos porque, de facto, a sua indústria caiu."Outra vez, é tudo asneira. "Indústria da palha"? Comboios competindo com carroças? Com um ministro que vê assim, em jargão de "choque tecnológico", o século XIX e a história e o impacto económico dos caminhos-de-ferro, não podemos senão ter um enorme receio sobre o modo como estes governantes vêem o TGV e o seu impacto económico. Exemplos sobre exemplos desta degenerescência aparecem todos os dias. Já não são bonitos de se ver os tempos da crise do "socratismo", mais ainda vão ser piores os tempos da queda do "socratismo". Claro que isto é tudo a superfície efémera. O fundo é a perda de competitividade da economia portuguesa, o défice descontrolado, a dívida que ninguém sabe como vai ser paga, o desemprego e o empobrecimento dos portugueses, o país cada vez mais longe da Europa. Mas a superfície traduz um ambiente, uma ecologia, um "estado" de podridão. Na verdade, como a sabedoria popular dos provérbios afirma, o peixe apodrece pela cabeça. (Versão do Público de 16 de Janeiro de 2010.) (url) (url) (url) EARLY MORNING BLOGS
1723 - Getting Information Out of Pa My pa he didn’t go to town Last evening after tea, But got a book and settled down As comfy as could be. I’ll tell you I was offul glad To have my pa about To answer all the things I had Been tryin’ to find out. And so I asked him why the world Is round instead of square, And why the piggies’ tails are curled, And why don’t fish breathe air? And why the moon don’t hit a star, And why the dark is black, And just how many birds there are, And will the wind come back? And why does water stay in wells, And why do June bugs hum, And what’s the roar I hear in shells, And when will Christmas come? And why the grass is always green, Instead of sometimes blue, And why a bean will grow a bean And not an apple, too? And why a horse can’t learn to moo, And why a cow can’t neigh? And do the fairies live on dew, And what makes hair grow gray— And then my pa got up an’ gee! The offul words he said, I hadn’t done a things, but he Jest sent me off to bed. (Anónimo.) (url) 16.1.10
(url) (url) God grant a blessing on this tower and cottage And on my heirs, if all remain unspoiled, No table or chair or stool not simple enough For shepherd lads in Galilee; and grant That I myself for portions of the year May handle nothing and set eyes on nothing But what the great and passionate have used Throughout so many varying centuries We take it for the norm; yet should I dream Sinbad the sailor's brought a painted chest, Or image, from beyond the Loadstone Mountain, That dream is a norm; and should some limb of the Devil Destroy the view by cutting down an ash That shades the road, or setting up a cottage Planned in a government office, shorten his life, Manacle his soul upon the Red Sea bottom. (William Butler Yeats) (url) 15.1.10
COISAS DA SÁBADO: BREJNEV VOLTA À TERRA Lenine e Staline matavam os seus adversários, os reais e os inexistentes para dar o exemplo. Krutchov, depois de liquidar Beria, prendia-os, mas instaurou costumes de perseguição mais moderados. Brejnev inventou o asilo psiquiátrico para os dissidentes. Como é que, sem profundas perturbações mentais, se podia negar a realidade gloriosa do socialismo soviético, a sabedoria perfeita dos seus líderes, a máxima racionalidade do comunismo? Só um louco é que podia negar a magnificência do Sol da Terra, logo o lugar dos dissidentes era os manicómios. Hoje, existe uma frente da calúnia vinda dos amigos de Sócrates na comunicação social e nos blogues. Alguém duvida do Nosso Sol da Terra e dos seus feitos económicos, sociais e culturais? Leva logo com uma chuva de insultos destinada a colocá-lo na ordem. No meio desses insultos, um tema tem vindo a ganhar proeminência: aqueles que atacam Sócrates têm que estar loucos, têm que ir ao médico, ao psiquiatra, estão senis, coloquem-lhes uma camisa de varas já. Tudo isto foi escrito ipsis verbis, com os alvos habituais, desde o Presidente da República, passando por Rangel e Manuela Ferreira Leite, acabando neste humilde louco, eu próprio. Brejnev voltou e estar bem acompanhado. De facto, como é que não se pode deixar de reverenciar, admirar, louvar, esse Primeiro-ministro genial, o melhor desde o 25 de Abril, que nos leva no caminho do progresso e do radiante porvir? Só por doença mental. (url) 13.1.10
"Defamation is sufficiently copious. The general lampooner of mankind may find long exercise for his zeal or wit, in the defects of nature, the vexations of life, the follies of opinion, and the corruptions of practice. But fiction is easier than discernment; and most of these writers spare themselves the labour of inquiry, and exhaust their virulence upon imaginary crimes, which, as they never existed, can never be amended." (Samuel Johnson) (url) 12.1.10
MAIS UMA VEZ
Para trabalhar tive que mudar de casa, de terra, de concelho, de distrito, porque a EDP, à primeira chuvada, corta a energia. (url) 11.1.10
(url) (url) (url) Quel couchant douloureux nous avons eu ce soir!
Dans les arbres pleurait un vent de désespoir, Abattant du bois mort dans les feuilles rouillées. À travers le lacis des branches dépouillées Dont l'eau-forte sabrait le ciel bleu-clair et froid, Solitaire et navrant, descendait l'astre-roi. Ô Soleil ! l'autre été, magnifique en ta gloire, Tu sombrais, radieux comme un grand Saint-Ciboire, Incendiant l'azur! À présent, nous voyons Un disque safrané, malade, sans rayons, Qui meurt à l'horizon balayé de cinabre, Tout seul, dans un décor poitrinaire et macabre, Colorant faiblement les nuages frileux En blanc morne et livide, en verdâtre fielleux, Vieil or, rose-fané, gris de plomb, lilas pâle. Oh! c'est fini, fini! longuement le vent râle, Tout est jaune et poussif; les jours sont révolus, La Terre a fait son temps; ses reins n'en peuvent plus. Et ses pauvres enfants, grêles, chauves et blêmes D'avoir trop médité les éternels problèmes, Grelottants et voûtés sous le poids des foulards Au gaz jaune et mourant des brumeux boulevards, D'un œil vide et muet contemplent leurs absinthes, Riant amèrement, quand des femmes enceintes Défilent, étalant leurs ventres et leurs seins, Dans l'orgueil bestial des esclaves divins... Ouragans inconnus des débâcles finales, Accourrez! déchaînez vos trombes de rafales! Prenez ce globe immonde et poussif! balayez Sa lèpre de cités et ses fils ennuyés ! Et jetez ses débris sans nom au noir immense! Et qu'on ne sache rien dans la grande innocence Des soleils éternels, des étoiles d'amour, De ce Cerveau pourri qui fut la Terre, un jour. (Jules Laforgue) (url) 10.1.10
Ele há dias em que de facto apetece dizer "tirem-me daqui". Quando o "daqui" é o Parlamento, um lugar a que pertenço, onde sou parte com gosto e interesse, um lugar que, contrariamente à opinião corrente, prezo exactamente por ser uma emanação do que de mais fundo existe na vida política democrática: a diferença de opiniões, os "partidos" em que nos dividimos, a representação imperfeita que seja, da turbulência que é a vida política em liberdade. É exactamente a imperfeição do Parlamento, que emana do seu carácter democrático, que sempre me interessou, porque só brilharia de perfeições se fosse totalitário ou apenas demagógico. A Assembleia Nacional salazarista era isso mesmo, tudo tão educado, tudo tão respeitador, tudo tão "vossas excelências" e "excelentíssimo senhor Presidente do Conselho", tudo sábios e doutores e comendadores e digníssimos representantes da nação, e nada de democracia. De todas as instituições políticas, mais nas suas fraquezas que nas suas forças, o Parlamento é o que é o Portugal político, não o Portugal dos políticos, mas o Portugal político que existe, tão próximo do comum dos cidadãos que estes o maltratam com a proximidade de uma coisa sua, de uma zanga de vizinhos, de uma querela conjugal, de uma valente discussão de café. Este aspecto igualitário que faz com o que o homem comum olhe de cima para o Parlamento torna muito árdua a função parlamentar, mas é, no fundo, normal. Há lá virtudes, mas o homem comum prefere vê-lo como o retrato dos seus vícios, e nas suas críticas demagógicas ao Parlamento presta-lhe a homenagem de o sentir mais seu do que alguma vez o admitirá. Mas há dias em que o Parlamento falha completamente, quando se torna uma pequena côterie de iluminados que querem contra tudo e contra todos, com uma superficialidade gritante, aceitando uma retórica tão inflamada como vazia, decidindo quase a brincar coisas cujas consequências não são pensadas a sério, em grande parte por modismo e por subserviência ao politicamente correcto. Ontem, o Parlamento tornou-se um ecossistema de todas as bizarrias da vida política portuguesa, um lugar puramente superstrutural, fora do país, sem laços com qualquer realidade, vivendo de uma ficção entre a festa radical chic e os movimentos da extrema-esquerda tardia, que descobriu com o atraso de trinta anos as "causas fracturantes". Ontem, o Parlamento afastou-se de qualquer fundação democrática real e tornou-se apenas o espelho formal de "causas" ultraminoritárias, próprias de uma cultura alternativa, minoritária mesmo entre os homossexuais e lésbicas, a maioria dos quais ainda estão dentro do "armário", num contexto social e etário muito diferente dos jovens que comemoravam nas escadas da Assembleia o seu dia de glória mediática. Essa maioria invisível, essa sim é que vive mal e infeliz, e estes folclores não a ajudam porque contribuem para reforçar a homofobia e não a combatê-la. O que mais me assusta é a irresponsabilidade de toda esta "festa". Os jornais e as televisões ardem de falsa indignação quando um deputado chama palhaço a outro ou o manda a qualquer lugar feio, mas não é isso que ajuda a estragar o Parlamento: é o momento em que este, sem sequer parar para pensar, se desvia do país para navegar causas absurdas com as quais gasta as melhores das suas palavras. Quando ouvia interiormente o "tirem-me daqui", foi quando assistia aos discursos grandiloquentes sobre o dia da "decência", o momento de "grande dignidade", a "reparação dos direitos ofendidos", a dádiva da "maior felicidade", com hipérbole sobre hipérbole, desde o primeiro-ministro aos Verdes, do Bloco de Esquerda ao discurso de puro insulto inflamado de um deputado da JS. No meio disto tudo, o discurso de Vale de Almeida parecia um exemplo de moderação, apesar do seu tom de oração evangélica aos "irmãos e irmãs", que fazia chorar as pedras da calçada. E mesmo Assis, que é bem melhor do que a sua bancada, colocava entre parêntesis o seu pessimismo antropológico para saudar o "progresso" daquele dia, em que o Sol rasgava as trevas ignaras da Reacção. Parecia o Congresso a aprovar a Declaração da Independência. Só o PCP, embora votando junto com a esquerda, mantinha uma reserva e discrição envergonhada, eles que ainda mantêm o fio da corrente ligado à terra e sabem bem que tudo aquilo é mais folclore do que qualquer emancipação de um direito. E era tudo, no fundo, tão ridículo, que eu me perguntava: será que "eles" não dão por ela? Se calhar não. As principais vítimas de tudo isto serão aqueles que amam ou desejam alguém do mesmo sexo, homossexuais e lésbicas, mais os primeiros do que as segundas, que sitiados por uma sociedade que efectivamente os hostiliza e maltrata, serão vítimas de ver o seu amor ou o seu desejo ainda mais marginalizado pela exibição mais ou menos folclórica e "fracturante" de meia dúzia de intelectuais, pequenos e médios criadores e artistas, gente do mundo da comunicação social, das indústrias culturais, da moda, urbana, jovem, bem arranjada e chique, que em conjunto com alguns políticos, deram origem a uma pseudocausa, de um pseudodireito, o do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Partido Socialista frágil nas suas convicções e sem uma ideia consistente para o país, que cada vez menos conhece, abriu a brecha por onde o Bloco de Esquerda entrou. E não o fez só agora, já com a legislação sobre o divórcio se andam a meter nas andanças da engenharia social "fracturante", gerando uma sociedade mais fragilizada e menos justa para os fracos, como as mulheres divorciadas por carta e os homossexuais que não pertencem ao beautiful people. A ilusão de que o acesso ao casamento quebra uma barreira simbólica que ajuda a terminar com a homofobia efectivamente existente, o argumento mais hábil de Vale de Almeida, repousa numa ambiguidade e numa hipocrisia. Porque Vale de Almeida sabe perfeitamente que ele e muitos outros a última coisa que pretendem é casar-se, ou sequer imaginam no casamento qualquer virtude especial. Eles sabem bem que o casamento é algo dos "outros", não por causa da lei que os exclui, mas porque o que vem virtualmente no pacote do casamento, a instituição familiar convencional, os "deveres conjugais", não correspondem ao mesmo mundo cultural e emocional do seu entendimento da "causa" dos homossexuais e lésbicas. Para eles o que conta é a "causa", não o mérito da instituição a cujas portas pretendem aceder e por isso a questão é outra, bem longe da luta por um direito, é um ataque a uma determinada forma de viver em sociedade, que abominam e desprezam e tem pouco a ver com a sua cultura e a sua mundovisão. Sabem que ao romper na lei a relação do casamento com a família nuclear, que implica possibilidade real da procriação, erodem para outros um valor que não desejam. É por isso que se trata de uma "luta", não por direitos, mas contra uma determinada forma de sociedade. E é também por isso que por todo o debate mostrou uma enorme intolerância num só sentido. "Fanáticos", "intolerantes", "retrógrados", "reaccionários", "aberrantes", foram palavras comuns, ecoando o que era o tom de muita comunicação social que tomou a causa como sua. "Tacanhos" eram todos os que se opunham ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Não é "luta de classes", mas é kulturkampf. O que irá acontecer nos próximos dias é previsível. Os primeiros casamentos de pessoas do mesmo sexo serão eventos "mediáticos". Vão lá estar todas as televisões. Haverá muita festa e depois, pouco a pouco, haverá cada vez menos casamentos e cada vez menos novidade. Apenas meia dúzia de pessoas se casará, o que mostrará como era vazia a força do direito ofendido. Mas será o folclore que "passará", uma espécie de travestismo perverso e o seu efeito será aumentar a intolerância homofóbica. (Versão do Público de 9 de Janeiro de 2010.) (url)
© José Pacheco Pereira
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