ABRUPTO

7.12.09


LENDO O DOUTOR JOHNSON EM ESPINHO


Nothing can be great which is not right. Nothing which reason condemns can be suitable to the dignity of the human mind. To be driven by external motives from the path which our heart approves, to give way to any thing but conviction, to suffer the opinion of others to rule our choice or overpower our resolves, is to submit tamely to the lowest and most ignominious slavery, and to resign the right of directing our own lives.

(Samuel Johnson)
O mar em Espinho é o que sempre foi. Duro, áspero, alteroso, o mar que mata os pescadores. Esse mar é praticamente a única coisa viva que se via na viagem de comboio entre Lisboa e Porto. De repente, quando o comboio ia por cima da terra, via-se aquele bocado de mar, ao mesmo tempo luminoso e sombrio, que anunciava a chegada às pontes do Porto, ao Norte. Lembro-me bem desse mar, e dessa terra quando era cortada pela via-férrea que separava duas partes, a vila progressiva e burguesa a oriente, uma vez por semana moldada por uma das maiores feiras de Portugal. Tudo, abaixo da linha férrea, seria "comido" pelo mar, que já tinha "comido" uma antiga parte de Espinho de que restavam apenas as ruínas de uma igreja submersa que aparecia em marés muito baixas. Do lado de baixo da linha, junto ao mar, havia um estranha combinação de gentes, a começar pelo Casino e a sua fauna, os restaurantes, os hotéis e as praias, vazios grande parte do ano, até que, se se caminhasse para sul, encontrar-se-iam as ruínas de velhas fábricas e depois o bairro dos pescadores, um gueto social que pouco comunicava com o resto da cidade.

Dei aulas em Espinho, numa escola conhecida como o "triciclo" porque funcionava em três edifícios, com alguma distância entre si, e tinha-se que passar os intervalos a andar de um para o outro. E conheci Espinho na clandestinidade, reunindo-me numa casa do bairro dos pescadores com alguns jovens operários, um dos quais passava a vergonha de ter dentro de casa o pai sempre bêbado, gritando impropérios. A cirrose era muito comum entre os pescadores e esta era uma situação tão incómoda como insegura, e eu, que me chamava então "Rui", tinha que fazer à noite um longo caminho pela própria via-férrea, até sair por um campo para ver se não era seguido e retroceder então para o bairro que deixara para trás na primeira passagem. Tenho memória de como era difícil caminhar à noite entre a gravilha, as travessas e os carris, à chuva, tudo coberto por uma película de óleo de lubrificação que caía dos vagões e que era muito escorregadia. É, Espinho não é para mim uma terra qualquer. E a culpa destas elocubrações é do malvado "espírito da terra", a culpa é de Espinho.

Lá voltei para as muito prosaicas Jornadas Parlamentares do PSD, onde não pude deixar de ter a sensação de viver mais um acto do fim dos tempos. Quando Manuela Ferreira Leite falou, num discurso exacto, sem falha, capaz, duro, preocupado, sobre o país que temos, ainda houve na sala um momento genuíno de verificação de "verdade", essa palavra que a dominação da mentira torna maldita. Ao meu lado, houve quem dissesse "ainda vamos ter saudades", com genuína nostalgia. Vamos. Alguns, provavelmente poucos. Saudades de uma raridade em política: alguém que actua em função do que pensa sobre o país, das suas convicções, da sua convicção na verdade (insisto, um crime em tempos socráticos) e que de facto pode ter muito pouco jeito para muitas coisas, menos para fazer aquilo que pensa que deve ser feito.

Contra Manuela Ferreira Leite, usou-se uma poderosa máquina de insultos, intimidação, desinformação, desvalor, manipulações sofisticadas e grosseiras que não conheceu um só dia de descanso. Como se verá, só a distância do tempo e da história o revelará na sua completa dimensão. Essa máquina incluiu o PS e um grupo no PSD, que conduziu uma campanha virulenta, recorrendo a todos os meios, nos quais avultava a colocação de notícias anónimas e um discurso de permanente intrigalhada, patrocinado pelos órgãos de comunicação mais próximos do Governo e do PS. Para ambos, PS e para um grupo no PSD, o pior que podia acontecer era que o PSD ganhasse as eleições legislativas e procederam em consequência.

Manuela Ferreira Leite cometeu certamente erros, menos do que os dos "seus", e muito menos do que os que lhe são atribuídos, mas actuou sempre baseada em coisas que hoje, em tempos de "protagonismo", de ambição pessoal e de interesses, se tornaram um desvalor em política. E mais: quando se olha retrospectivamente de há ano e meio para cá, poucos líderes do PSD podem apresentar um património de análise e propostas mais conformes com a realidade nacional, apresentadas no tempo certo e, como é óbvio, primeiro incompreendidas e atacadas e depois impondo-se pela dura realidade da vida. Foi Manuela Ferreira Leite a primeira a chamar a atenção do problema da dívida (hoje uma trivialidade que quase todos repetem); para o modelo de crescimento baseado no betão, e contra ela se fez uma barragem no PS e no PSD; a primeira a chamar a atenção para a iminência de uma crise social grave, palavras que nunca tinham sido até então ditas, para os problemas das pequenas e médias empresas, antes de isto se tornar um chavão. Mas havia sempre uma mantra repetida pelo PS e por um grupo no PSD; não tem propostas, não sabe o que quer, só discute o TGV, e, crime dos crimes, fala da falta de liberdade, da "asfixia" que este Governo trouxe à sociedade. Todos os dias aparece um novo dado que lhe dá razão.



Mas não foi só isso que a abateu a prazo e digo a ela pessoalmente, porque, salvo honrosas excepções, ela esteve sempre quase sozinha. Foi a raiva que provocava e provoca. A sua mera existência na luta política coloca uma enorme incomodidade porque ela trouxe consigo uma forma de carácter antigo, de política diferente, de convicção pessoal, que não podia deixar de ser um espinho nestes tempos de plástico e de plasticidade. Era de facto "antiquada", mas um mundo que torna antiquado os seus valores também não é o meu. Foi por isso que a minha boa leitura em Espinho foi a do dr. Johnson, esse homem de infinita sabedoria e mau feitio.

Em Espinho, nas Jornadas Parlamentares, efectivamente quase todos estão "noutra". Rei morto, rei posto. Cá fora e lá dentro os jornalistas trocam tweets sobre irrelevâncias, compras de roupa, restaurantes, desatentos a tudo que não seja a intrigalhada do costume, com uma agenda que tanto podia ter a ver com o que se estava a passar em Espinho como na Cochinchina. Mil ambições esperam à porta. Mil pequenas carreiras estão à espera que a senhora "finalmente" saia. Os grandes interesses no ambiente, um dos sectores em que a relação com o Governo é crucial entre quem faz negócio e quem não faz, têm forte representação no partido. Alguns autarcas mais ambiciosos sabem que nunca chegarão a primeiro-ministro, mas precisam de um upgrade do seu poder, daí os igualmente fortes interesses na regionalização. O PSD é para eles uma marca, uma marca de que precisam. O país pouco lhes interessa.

O que está a matar o PSD não é novo, vem-se desenvolvendo e enquistando há muitos anos: há cada vez mais gente que precisa do partido, seja do grande lugar como do pequeníssimo lugar, e há cada vez menos gente que é livre e independente. Há cada vez mais gente que não existiria na sociedade, não teria o trem de vida que tem, que não teria o emprego que tem, que não teria as prebendas que tem, se não fosse serem alguém numa estrutura qualquer. Há cada vez mais gente que é empregado da social-democracia e há cada vez menos sociais-democratas.

O processo oligárquico conhece no PSD um crescimento exponencial e entrelaça-se com vigor à volta dos lugares do poder, pequeno e médio. A ideia de que o problema do PSD é programático, que tem a ver com o afastamento dos fundamentos genéticos, que tem o "espaço" ocupado pelo PS, tem uma parte de verdade, mas nenhuma refundação ideológica, nenhum debate de ideias, resolve o problema do modo como partido está e o modo como partido está por dentro impede, a não ser por um milagre, que nele se faça política como Manuela Ferreira Leite fez. É, vamos mesmo ter saudades.

(Versão do Público de 5 de Dezembro de 2009.)

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© José Pacheco Pereira
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